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Garum de sardinha (Field garum project)

Field garum project (sardinha)

Localização / location: Setúbal - Portugal

Garum de sardinha - dia 1

2021 march 4

Garum de sardinha - dia 4

2021 march 8

Garum de sardinha - dia 8

2021 march 12

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March 2021 temperature

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2021 april 09

odor intenso a peixe, não desagradável

Garum de sardinha - dia 50

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odor intenso a peixe, não desagradável

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odor intenso a peixe, não desagradável

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Garum de sardinha

Início de experiência de produção de sardinhas anchovadas

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Garum de cavala

Garum de cavala

Garum de cavala flos gari límpido (flor do garum) obtido a partir da primeira filtragem

Ingredientes: Cavala da costa portuguesa e sal 

Comercializado em frascos de 50ml

 


Garum era sem dúvida o condimento favorito dos romanos. Feito de diversas partes de peixe fermentadas, era um tipo de molho de peixe produzido em todo o império. Altamente proteico, o GARUM, aumenta a intensidade do sabor. No século I d.C, o garum, produzido em Espanha a partir da maceração de cavala, era considerado o melhor garum. O seu custo era comparável apenas ao dos melhores perfumes (com mil sestércios, compram-se dois congi, o equivalente a cerca de seis litros) Marcus Valerius Martialis (Século I d.C.) elogia o luxo do garum produzido desde que o primeiro sangue jorrou da cavala recém cortada, considerado um particularmente luxuoso e apreciado presente.

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A influência Romana no Sado

Creiro (Arrábida)

Creiro (Arrábida):

um estabelecimento de produção de preparados de peixe da Época Romana
Carlos Tavares da Silva* e Antónia Coelho-Soares*

 * Centro de Estudos Arqueológicos, Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal (Associação de Municípios da Região de Setúbal) cea.maeds@amrs.pt 

Resumo

O estabelecimento romano de produção de preparados piscícolas do Creiro, servido pelo fundeadouro da baía do Portinho da Arrábida, era constituído por diversas unidades fabris, das quais se escavou a G12. Desde 1987, tem sido objeto de escavações promovidas pelo Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal (MAEDS). Estas deram a conhecer a planta completa de uma unidade fabril murada (G12) que incluía oficina de salgas (F14), “armazéns”, edifício provavelmente habitacional e balneário. 

Foram identificadas duas fases de laboração separadas por período de abandono. A primeira abrange a 2.ª metade do século I e o século II. A segunda fase de produção, presumivelmente da 2.ª metade do século IV e 1.º quartel do século V, reutilizou somente parte da Oficina F14, que já se encontrava em mau estado de conservação. Após o abandono da Fábrica G12, o local continuou a ser ocupado ao longo do século V, e os tanques de salga da Oficina F14 foram então reutilizados como vazadouro de lixos domésticos. 

 Abstract 

The Roman fish-processing factory of Creiro, directly connected with the small fishing harbour of Portinho da Arrábida, was integrated into the large navigable Sado estuary. It was located in perfect maritime relationship with the amphorae kilns and salt wetland, of the inner estuary, and with the Sado harbour complex. Creiro was made up of several fish-salting factories. In this paper the G12 factory will be presented. 

Since 1987, the site has been excavated by the Museum of Archaeology and Ethnography of the District of Setúbal (MAEDS). Those archaeological works revealed a complete plan of a walled factory (G12), which included the fish-salting workshop (F14), a row of warehouses, residential properties and bath houses. 

Two major phases of activity have been identified in the G12 fish processing unity separated by a phase of abandonment. The oldest remains of a fish products industry dates from the 2nd half of the 1st and 2nd centuries AD. The 2nd phase of activity occurred during the 2nd half of the 4th century and in the 1st quarter of the 5th. But in that period only some fish-salting tanks of the workshop F14 were used. After the abandonment of the G12 factory, the site remained occupied during the 5th century, and the salting tanks of the workshop F14 were reused as a dump of household waste. 

Fig. 1- Localização do sítio arqueológico do Creiro na Carta Militar Portuguesa. 

Fig. 2 – Vista do sul da baía do Portinho da Arrábida, indicando-se a localização do sítio arqueológico do Creiro (elipse de cor branca). 

1. Introdução

As escavações arqueológicas efetuadas no Creiro desde 1987 1, promovidas pelo Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal (MAEDS), permitiram identificar a planta completa de uma fábrica de preparados piscícolas da Época Romana. Além da oficina de produção de salgas e molhos de peixe, constituída por conjunto de tanques de salga, que designaremos por Oficina F14 (dada a conhecer em Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1987), foi construído, claramente associado a ela, um recinto murado que integrava compartimentos de armazenagem e provavelmente habitacionais, organizados em torno de um pátio, bem como um balneário. No exterior deste recinto, surgiram: um poço, aqueduto (?) e cisterna, e, contíguas ao muro sul do mesmo recinto, estruturas pertencentes a outra oficina de produção de salgas (Oficina K10). 

1 Realizaram-se por iniciativa do Parque Natural da Arrábida e foram coordenadas por Carlos Tavares da Silva e Antónia Coelho-Soares, coadjuvados por Júlio Costa e Jorge Domingos Costa, do MAEDS. Optou-se prioritariamente pela escavação em área, removendo a camada superficial (C.1) e, deste modo, pondo a descoberto o topo das principais estruturas arquitetónicas; em um segundo momento procedeu-se ao aprofundamento estratigraficamente orientado, escavando-se integralmente a oficina de produção de salgas F14, o balneário e o “Armazém” A2. A metodologia utilizada, bem como a quadrícula adotada foram as definidas aquando da primeira campanha (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1987). 

O arqueossítio do Creiro ocupa pequena rechã (Figs. 1–3) com a cota de 25–30 m, formada por argilas do Paleogénico indiferenciado (Carta Geológica de Portugal, esc. 1:50 000, folha 38B-Setúbal), situada no sopé da encosta sul da Serra da Arrábida. Esta rechã é sobranceira ao troço oriental da praia do Portinho; é limitada a este e a oeste por vales por onde correm linhas de água e onde, localizada a oeste, existe importante nascente de água doce (Fonte da Paciência); as suas vertentes, onde afloram troços de muros atribuíveis à Época Romana, encontram-se muito erodidas e ravinadas. A zona central da jazida arqueológica possui as seguintes coordenadas: 38° 28’ 53.50’’N; 8° 58’ 36.48’’W. 

O estabelecimento da Época Romana abrangeria, pois, área superior à da atual rechã. É muito provável que essa ocupação não se restringisse à parte superior da mesma: ter-se-ia talvez estendido pela encosta até à praia, vencendo um desnível de aproximadamente 15 m. De facto, pelo teor da nota recolhida nos documentos inéditos deixados por A. I. Marques da Costa sobre o Creiro e na qual este arqueólogo alude a “alguns tanques de alvenaria em ruínas, forrados de uma camada de argamassa signina, [visíveis] na margem esquerda de uma linha de água que desce da Serra da Arrábida até ao mar, próximo deste e a leste do Portinho” (Tavares da Silva & Cabrita, 1964, p. 69), somos levados a pensar que tais testemunhos arquitetónicos se situariam no sopé sudoeste daquela rechã, no ponto onde o vale que a limita a poente encontra a praia. 

A riqueza piscícola, designadamente em sardinha, da costa meridional da Arrábida, as excelentes condições naturais de fundeadouro da abrigada enseada do Portinho e a existência de nascente de água doce teriam representado os principais factores responsáveis pela escolha do Creiro para a implantação de um núcleo fabril de produção de preparados de peixe. A própria enseada do Portinho oferecia, até há poucas décadas, excepcional riqueza e diversidade faunística em resultado principalmente do seu fundo se encontrar revestido por Zoostera. Além de moluscos e crustáceos, eram comuns peixes como a raia (género Raja), a enguia (Anguilla anguilla), o bodião (Lobrus bergylta e Symphodus melops), e nela entravam cardumes de peixe-rei (Atherina presbyter) e de juvenis de cavala (Scomber scombrus) e sardinha (Sardina pilchardus) 2

2 Informação pessoal do Dr. Miguel Henriques, coordenador do Museu Oceanográfico do Parque Natural da Arrábida, instalado na Fortaleza de Santa Maria, Portinho da Arrábida. 

2. Organização do espaço edificado. Estruturas arquitetónicas

A fábrica de produção de preparados piscícolas do Creiro que as nossas escavações puseram a descoberto será designada por Fábrica G12 (Fig. 4). Durante o Alto Império teria possuído planta retangular com a área estimada de ca. 730 m2. Era limitada a norte pelo muro (m.) 2 (Fig. 5) da Oficina F14 e, imediatamente a leste desta, pelo m. 25, ao longo do qual foi construído o Edifício H, formado por compartimentos (H1-H3, H6 e H7) de planta retangular; a nascente, pelo m. 26a, que representa o limite oriental de fiada de seis compartimentos (A1-A6) que designámos por “Armazéns”; a sul, pelo m. 27, onde se abria a entrada principal que dava acesso direto a um amplo pátio em torno do qual se organizavam as diversas instalações da fábrica. 

Fig. 4 – Creiro, 2015. Planta geral da área escavada. Levantamento de Jorge Domingos Costa e Júlio Costa. 

Fig. 5 – Creiro, 2015. Planta esquemática da área escavada, com a designação das unidades e elementos arquitetónicos. 

Em período indeterminado, o muro que, por hipótese, encerrava a Fábrica G12 a oeste teria sido destruído em grande parte (resta-nos o m. 1 da Oficina F14) para a construção de um balneário, cuja orientação geral difere completamente da das unidades arquitetónicas atrás referidas. 

A entrada principal da Fábrica G12 (Figs. 12 e 13), que se abria a meio do m. 27, com 2,35 m de largura, possuía uma soleira constituída por blocos aparelhados, lajiformes e paralelepipédicos, de biocalcarenito, o maior com 0,8 x 0,5 x 0,2 m e o menor com 0,35 x 0,25 x 0,2 m. Esta soleira vencia um desnível de 0,2 m e possuía a largura de 0,8 m. A entrada principal era, exteriormente, enquadrada por dois pilares de secção retangular (0,9 x 0,65 m), rebocados com argamassa de cal e areia, que suportariam um telheiro. Além deste vão, identificámos outros de acesso à Fábrica G12: no mesmo muro (27), 2,9 m para oeste da entrada principal, abria-se um vão com 1,2 m de largura que apresentava soleira provida, no exterior, de três degraus; no m. 26a, próximo do canto NE da fábrica, existiu, na fase inicial de construção, uma entrada com 1,45 m de largura, encerrada em fase tardia. 

No exterior da Fábrica G12, identificámos um poço (a NE), um aqueduto (?) e uma cisterna (a SW). 

Também no exterior, foi construído (a SE), no canto formado pelo m. 26b com o m. 27 o que, no atual estado da investigação sobre o Creiro, admitimos tratar-se de outra oficina de produção de preparados de peixe que designaremos por Oficina K10 (Fig. 13) e integraria outra fábrica. 

Fig. 6 – Creiro, 2015. Vista de nordeste da Oficina F14. Em último plano, a baía do Portinho da Arrábida. 

2.1. Oficina F14

Situada no limite norte da Fábrica G12, a Oficina F14 (Figs. 6 e 7) foi edificada sobre parte de um presumível aqueduto. 

A descrição pormenorizada desta oficina foi já publicada (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1987), pelo que aludiremos apenas a alguns aspetos que consideramos mais relevantes. 

Trata-se de um edifício de planta retangular (13 x 4,8 m), completamente murado, integrando onze tanques e um pátio aberto a sul através de vão com 1,4 m de largura. 

Os tanques distribuem-se por dois grandes grupos morfo-funcionais. O numericamente mais importante é o dos destinados à produção de salgas e/ou molhos de peixe (Tanques 1–5, 7–10), sendo quatro de planta subquadrangular (Tanques 1–3 e 7) e cinco sub-retangulares (Tanques 4, 5, 8, 9 e 10) (Quadro 1). As paredes e o fundo foram revestidos por uma espécie de “opus signinum” desprovido de cerâmica, ou seja, constituído por cal, areia e cascalho anguloso. Internamente, a junção das paredes entre si formam cantos arredondados, de tal modo que o Tanque 10 possui planta quase ovalada. A ligação das paredes com o fundo faz-se através de meia-cana saliente. 

O outro grupo morfo-funcional está representado pelos Tanques 6 e 11 que correspondem à 1.ª fase de remodelação da oficina; nestes, o pavimento do pátio da oficina foi reutilizado como fundo; os muros (ms. 22–24) então edificados, também revestidos por argamassa de cal, areia e cascalho anguloso, assentaram sobre o pavimento do pátio e adossaram-se à superfície rebocada das paredes dos tanques de salga, por conseguinte preexistentes. 

Os Tanques 6 e 11, o primeiro de planta subquadrangular e o segundo sub-retangular, são menos profundos que os destinados à produção de salga e o seu fundo menos impermeável que o destes; teriam desempenhado funções diferentes, podendo ter sido utilizados como reservatórios de sal. 

O pátio apresentava inicialmente planta em S, mas, logo que na 1.ª fase de remodelação o seu braço este foi ocupado pelo Tanque 6, ficou reduzido a uma planta em L. O pavimento é formado por calhaus sub-rolados que chegam a atingir 0,05 m de eixo maior, de calcário, ou, mais raramente, de brecha da Arrábida, argamassados com cal e areia. No braço oeste existe uma depressão em calote, com 0,5 m de diâmetro, revestida por opus signinum rico em fragmentos de cerâmica. Esta estrutura corresponde, por certo, a 2.ª fase de remodelação ocorrida na Fase II do funcionamento da Fábrica G12. Pertencente à mesma fase de remodelação, foi identificada no quadrado G14(g), sobre o topo destruído do muro que limita a Oficina F14 a sul, uma outra estrutura também em calote e igualmente revestida por opus signinum muito rico em cerâmica. A sua atribuição à 2.ª fase de remodelação, Fase II de utilização da fábrica, baseia-se nos factos de ter assentado no topo já muito destruído do muro sul (m. 4) da Oficina F14; de ter, em parte, coberto derrubes do mesmo muro; e de ser revestida por opus signinum muito rico em fragmentos de cerâmica (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1987, pp. 231–232, Fig. 6). 

Quadro 1 – Creiro, 2015. Oficina F14. Dimensões dos tanques utilizados na produção de preparados de peixe. 

Fig. 7 – Creiro, 2015. Planta da Oficina F14. 

Fig. 8 – Creiro, 2015. Oficina F14. Corte nos Tanques 1 a 5. 

Fig. 9 – Creiro, 2015. Planta do Edifício H e de troço de aqueduto (?) situado imediatamente a norte. 

2.2. Edifício H

Situada no limite norte da Fábrica G12, a Oficina F14 (Figs. 6 e 7) foi edificada sobre parte de um presumível aqueduto. 

A descrição pormenorizada desta oficina foi já publicada (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1987), pelo que aludiremos apenas a alguns aspetos que consideramos mais relevantes. 

Trata-se de um edifício de planta retangular (13 x 4,8 m), completamente murado, integrando onze tanques e um pátio aberto a sul através de vão com 1,4 m de largura. 

Os tanques distribuem-se por dois grandes grupos morfo-funcionais. O numericamente mais importante é o dos destinados à produção de salgas e/ou molhos de peixe (Tanques 1–5, 7–10), sendo quatro de planta subquadrangular (Tanques 1–3 e 7) e cinco sub-retangulares (Tanques 4, 5, 8, 9 e 10) (Quadro 1). As paredes e o fundo foram revestidos por uma espécie de “opus signinum” desprovido de cerâmica, ou seja, constituído por cal, areia e cascalho anguloso. Internamente, a junção das paredes entre si formam cantos arredondados, de tal modo que o Tanque 10 possui planta quase ovalada. A ligação das paredes com o fundo faz-se através de meia-cana saliente. 

O outro grupo morfo-funcional está representado pelos Tanques 6 e 11 que correspondem à 1.ª fase de remodelação da oficina; nestes, o pavimento do pátio da oficina foi reutilizado como fundo; os muros (ms. 22–24) então edificados, também revestidos por argamassa de cal, areia e cascalho anguloso, assentaram sobre o pavimento do pátio e adossaram-se à superfície rebocada das paredes dos tanques de salga, por conseguinte preexistentes. 

Os Tanques 6 e 11, o primeiro de planta subquadrangular e o segundo sub-retangular, são menos profundos que os destinados à produção de salga e o seu fundo menos impermeável que o destes; teriam desempenhado funções diferentes, podendo ter sido utilizados como reservatórios de sal. 

O pátio apresentava inicialmente planta em S, mas, logo que na 1.ª fase de remodelação o seu braço este foi ocupado pelo Tanque 6, ficou reduzido a uma planta em L. O pavimento é formado por calhaus sub-rolados que chegam a atingir 0,05 m de eixo maior, de calcário, ou, mais raramente, de brecha da Arrábida, argamassados com cal e areia. No braço oeste existe uma depressão em calote, com 0,5 m de diâmetro, revestida por opus signinum rico em fragmentos de cerâmica. Esta estrutura corresponde, por certo, a 2.ª fase de remodelação ocorrida na Fase II do funcionamento da Fábrica G12. Pertencente à mesma fase de remodelação, foi identificada no quadrado G14(g), sobre o topo destruído do muro que limita a Oficina F14 a sul, uma outra estrutura também em calote e igualmente revestida por opus signinum muito rico em cerâmica. A sua atribuição à 2.ª fase de remodelação, Fase II de utilização da fábrica, baseia-se nos factos de ter assentado no topo já muito destruído do muro sul (m. 4) da Oficina F14; de ter, em parte, coberto derrubes do mesmo muro; e de ser revestida por opus signinum muito rico em fragmentos de cerâmica (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1987, pp. 231–232, Fig. 6). 

2.3. “Armazéns”

Os seis compartimentos (A1-A6) que designámos por “Armazéns” (Figs. 10 e 11) possuem planta retangular e dimensões muito semelhantes entre si: o comprimento oscila entre 4,3m e 4,6 m e a largura entre 1,9 m e 2,6 m. Este conjunto arquitetónico é limitado a nascente pelo m. 26a (0,55 m de espessura), cuja extremidade sul se adossou ao m. 27 e cujo prolongamento para sul é o m. 26b, muros que pertencem à Oficina K10; a sul, pelo m. 27 (0,55 m de espessura); a oeste pelo m. 31 (0,55 m de espessura) e a norte pelo m. 30 (0,55 m de espessura). Os ms. 26a, 30, 31 bem como os que separam os compartimentos oferecem aparelho idêntico ao dos muros do Edifício H e diferente do dos ms. 26b e 27 (da Oficina K10), cujos paramentos são constituídos por blocos de maiores dimensões semi-aparelhados e, em geral, sem blocos mais pequenos entre eles. 

Os “armazéns” comunicam diretamente com o pátio da Fábrica G12 através de vãos abertos no m. 31. 

Somente o “Armazém” 2 foi objeto de escavação em profundidade, verificando-se que  o que resta das suas paredes conserva uma altura compreendida entre 0,10 m (m. 31) e 0,5 m (m. 26a). O pavimento era constituído por camada (ca. 0,05 m de espessura) de blocos com ca. 0,05 m de dimensão máxima ligados por argila. 

O topo do edifício dos “armazéns” separava-se dos Compartimentos H4 (3,6 m x 2,5 m) e H5 (2,4 m x 2,15 m), construídos ao longo do m. 25, por um corredor (1,5 m de largura) de orientação E-W, que, numa primeira fase, abria para o exterior da Fábrica G12 por vão (1,5 m de largura) existente no m. 26a. Este vão foi encerrado em época tardia. O corredor infletia ortogonalmente para sul no Q. I-J/15, indo desembocar no pátio da Fábrica G12. 

Fig. 12 – Creiro, 2015.

Entrada da Fábrica G12, vista de sul:

1– Soleira;

2 – Base de pilares que suportariam um telheiro;

3 – Pátio central. 

Fig. 10 – Creiro, 2015. Aspeto da Fábrica G12. Fotografia obtida de sudeste. 1 – Pátio central; 2 – “armazéns”. 

Fig. 11 – Creiro, 2015. Planta do poço e da área dos “armazéns”. 

2.4. Oficina K10

A Oficina K10 (Fig. 13), muito incompletamente escavada em área, e sem qualquer intervenção arqueológica em profundidade, integraria uma outra fábrica de produção de preparados de peixe, cuja construção foi anterior à da Fábrica

G12, pois, como vimos anteriormente, além das diferenças de aparelho, a extremidade sul do m. 26a (pertencente à Fábrica G12) adossou-se ao m. 27. Este muro tornou-se comum a ambas as fábricas quando da construção da G12. A Oficina K10 é limitada a norte pelo m. 27, a este pelo m. 26b e a oeste pelo m. 55; o muro sul não foi ainda posto a descoberto. 

Organizar-se-ia a partir de um pátio limitado a este pelo m. 26b e possuía tanques subquadrangulares (2,4 x 2,1 m), e retangulares, compridos e estreitos (5,3 x 1,2 m e 4,9 x 1,2 m). 

Fig. 13 – Creiro, 2015. Planta da área da entrada da Fábrica G12 e da Oficina K10. 

2.5. Balneário

A planta do balneário (Fig. 14) apresenta-se incompleta: encontra-se destruído a sul do hipocaustum, em resultado da erosão e da implantação recente de construções clandestinas. Compreende um vestíbulo/apodyterium (B1), uma sala de planta circular (B2), que poderia funcionar igualmente como apodyterium; um frigidarium (B3) com tina forrada a mármore; três compartimentos aquecidos providos de hipocaustum (B4, B5 e B6) e compartimento de apoio à fornalha (B7). 

Os muros do balneário, incluindo os do hipocaustum (com excepção dos do Compartimento B2) oferecem aparelho que obedece ao mesmo modelo: blocos pétreos semi-aparelhados, paramentos regulares e argamassa de cal e areia. 

O vestíbulo (B1) é uma comprida e estreita sala de planta em L (6,6 x 2,6/3,6 m), de orientação NW-SE que comunica com o exterior através de um vão aberto na sua parede SE (m. 61). É pavimentado a opus signinum pouco consistente e rico em fragmentos de cerâmica. Adossado às paredes NE (m. 62) e NW (m. 63) existe um banco constituído por taipa forrada superiormente por tijoleiras e, lateralmente, por reboco de cal e areia. 

Junto do muro SE (m. 61) surgiu, sobre o pavimento, uma acumulação de pequenos (20 x 25 x 20 mm) fragmentos de cerâmica de construção que se destinariam à preparação de opus signinum. 

O vestíbulo comunica a NE com o Compartimento B2, talvez utilizado também como apodyterium, através de um vão com 0,1m de largura, provido de soleira de calcário bem aparelhado e com orifício para encaixe do gonzo da porta. Esta sala tem planta circular (5,4 m de diâmetro interno); a parede que a limita é formada por blocos de calcário mal aparelhados ligados por argila e revestida internamente por reboco de cal e areia; o pavimento é de opus signinum rico em fragmentos de cerâmica. 

A partir do vestíbulo tem-se ainda acesso ao frigidarium (B3) através de vão (0,85 m de largura) aberto no m. 69. Este compartimento, com 4,8 m por 3,6 m, possui pavimento de opus signinum com fragmentos de cerâmica de reduzidas dimensões. Na base das paredes, no contacto com o pavimento, existe meia-cana saliente de opus signinum. No lado SE tinha-se acesso, através de dois degraus, a uma tina de planta retangular (1,5 x 1,75 m, internamente) revestida por placas de mármore assentes sobre camada de argamassa que, por sua vez, cobre um revestimento de opus signinum rico em fragmentos de cerâmica. Estão bem patentes duas fases de construção. Assim, os seus muros SE (m. 65) e SW (m. 66) apresentam a seguinte estrutura (do exterior para o interior da tina): muros primitivos, com espessuras de 0,6 m, constituídos por blocos de calcário mal aparelhados ligados por argamassa de cal e areia; reboco de cal e areia com 15 mm de espessura que revestia esses muros; blocos de calcário não aparelhados e ligados por argamassa (espessura 0,13 m); revestimento de opus signinum (0,04 m de espessura), contendo numerosos fragmentos de cerâmica; camada de argamassa sobre a qual assentaram as placas de mármore que, na última fase, revestiram o interior da tina. 

Fig. 14 – Creiro, 2015. Planta do Balneário. 

Fig. 15 – Creiro, 2015. Balneário. Aspeto do hipocaustum (Compartimento B5). Fotografia obtida de noroeste, a partir do interior do Compartimento B7 (sala de apoio à fornalha). 

O frigidarium comunica, por dois vãos abertos na sua parede NW (m. 70), com a zona aquecida do balneário, de que restam três salas (B4, B5 e B6). Estas abrangiam a área total de 34 m2 e reduzem-se ao hipocaustum (Fig. 15), que possuía pavimento de tijoleira. As suspensurae, já desaparecidas, eram suportadas, no Compartimento B5, por pilares de tijolo, de secção retangular (0,35 x 0,20 m) e quadrangular (0,20 m de lado), organizados em cinco fiadas de orientação NE-SW com quatro pilares cada uma; e nos Compartimentos B4 e B6 por estruturas, também de tijolo, em arco. 

O Compartimento B7 correspondia ao praefurnium. De planta retangular (3,9 x 2,9 m), o seu pavimento é constituído pela rocha cortada e afeiçoada e encontra-se ao nível do pavimento  do hipocaustum; comunica com o B6 através de fornalha de cano simples (Reis, 2004, Fig. 9), com 1,8 m de comprimento por 0,85 m de largura, de cobertura em arco de tijolo. 

Acedia-se ao Compartimento B7 por escada de alvenaria adossada à superfície interna da parede NE (m. 69), que venceria um desnível de 1,1m; conservou-se o degrau inferior, assente sobre um embasamento de planta retangular (1,83 x 0,66 m) e 0,45 m de altura, construído com blocos pétreos não aparelhados e fragmentos de tijoleira ligados por argila. 

As paredes deste compartimento conservam a altura de 1,98 m e têm 0,45 m de espessura. Na parede SE (m. 73), comum ao Compartimento B5, existe uma abertura muito destruída, detetando-se os restos de um arco de tijolo, por onde o ar quente do praefurnium passaria para o hipocaustum daquele compartimento. 

No exterior do balneário, confinando com o seu lado NW (m. 72), à cota de 9,09 m (o pavimento do frigidarium tem de cota 7,76 m e o piso do hipocaustum, ca. 6.6 m), e na direcção da fornalha, registou-se a base do que poderia ter sido um reservatório de água; de planta trapezoidal (2,5 m de comprimento conservado por 1,70/1 m de largura), era revestido por opus signinum, contendo numerosos fragmentos de cerâmica. Este revestimento formava três camadas sobrepostas. 

Fig. 16 – Creiro, 2015. Balneário. Escavação na área do Compartimento B1: Conduta α (1), cortada, em momento de época indeterminada, pela Conduta λ (3); 2 – Conduta β. 

Fig. 17 – Creiro, 2015. Balneário. Compartimento B1: 1– Conduta α, conservando o arco da abóbada subjacente ao Compartimento B3; 2 – Conduta λ. 

2.6. Sistema hidráulico

No exterior da Fábrica G12, próximo do seu canto NE (Q. J16), surgiu a boca de um poço (não escavado em profundidade), circular, com 1,8 m de diâmetro interno e muro (0,55 m de espessura) de blocos não aparelhados, de calcário e biocalcarenito, ligados por argila. Ao lado oriental deste muro adossa-se uma estrutura de planta trapezoidal, incompletamente escavada em superfície e profundidade, com 1,8 m de comprimento atual e 1/1,2 m de largura, que pode ter sido um tanque ou a abertura do acesso ao poço se este for de mergulho (Fig. 11). 

A l,6 m do poço, para oeste, existe uma estrutura retangular, comprida e estreita (6,6 m de comprimento por 0,85 m de largura interna) limitada por muros de blocos de calcário e biocalcarenito unidos por cal e areia e de aparelho semelhante ao dos muros 26b e 27. Esta estrutura prolonga-se para oeste, sem aparentes soluções de continuidade, por extradorso de abóbada de berço construída com pequenos blocos ligados por abundante argamassa; tem ca. 1m de largura e estende-se por 7,2 m até atingir o muro nascente (m. 3) da Oficina F14, sob a qual continua para oeste. Estaremos perante o aqueduto que conduzia a água do poço para a cisterna? Seria anterior à implantação da Fábrica G12, visto ter sido coberto pela Oficina F14 e (parcialmente) pelo m. 25 que limita a fábrica a norte. É muito possível que este presumível aqueduto se prolongue pela conduta identificada em 1987 através de profundo rombo no pavimento do braço oeste do pátio da Oficina F14. Verificámos então tratar-se do troço de uma canalização, de direção NE-SW, com 0,5 m de largura e 0,6 m de altura que, passando sob aquela oficina, prosseguia para além dela a partir do seu canto SW (Q. E13). O fundo e a parte inferior das paredes (até à altura de 0,35 m) eram revestidos por “opus signinum” sem fragmentos de cerâmica. Possuía meia cana saliente na ligação do fundo com as paredes (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1987, p. 228). 

Nos Qs. E/13-12, ao escavarmos em profundidade o Compartimento B1 do balneário, pusemos a descoberto três condutas, que designámos por Alfa, Beta e Gama (Figs. 14, 16 e 17). A primeira, que canalizava água para a cisterna, passava sob os Compartimentos B1 e B3 do balneário e talvez fizesse parte do sistema hidráulico a que teria pertencido a estrutura abobadada anteriormente referida bem como a conduta observada em 1987 (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1987, pp. 227–228). Observámo-la numa extensão de 0,8 m (orientação N-S). Com 1 m de altura e 0,4 m de largura interna, possui as paredes (0,65 m de altura) constituídas por blocos em geral com 0,1 m de dimensão máxima, não aparelhados e ligados por argamassa de cal e areia; o fundo, revestido por “opus signinum”, sem cerâmica; meias-canas salientes na ligação das paredes com o fundo; abóbada de tijolo (só observada sob o frigidarium, já que na área do vestíbulo foi totalmente destruída). Esta conduta teria sido desativada, se não antes, pelo menos quando da construção da Conduta γ, que a cortou transversalmente (Fig. 17). 

De secção interna retangular (0,27/0,35 m de largura; 0,1 m de altura), a Conduta β (Fig. 16) foi construída com tijoleiras que formam o fundo, as paredes e a cobertura. Observámo-la numa extensão de 1,55 (orientação NW-SE). 

A Conduta γ tem, igualmente, secção interna retangular (0,18 m de largura e 0,1 m de altura) e é constituída também por tijoleiras. O troço posto a descoberto, de orientação W-E, desembocava na Conduta β (Fig. 16). 

As Condutas β e γ poderiam ter servido para escoar as águas do balneário. 

A cisterna situa-se imediatamente a sul do Compartimento B3 do balneário. Não foi objeto de qualquer escavação arqueológica. Localizada no cimo da encosta que desce para a praia, a erosão que sobre ela tem atuado pôs parcialmente a descoberto os seus muros laterais Estes conservam ainda, nas suas extremidades setentrionais, restos do arranque de abóbada; eram revestidos por “opus signinum” sem fragmentos de cerâmica, mas sim com pequenos calhaus rolados (dimensão máxima inferior a 1 cm). 

3. Contextos estratigráficos e cronologia

Durante a 2.ª metade do século I e no século II, a Oficina F14 teria funcionado de modo pleno. Em momento indeterminado deste último século, pelo menos parte dos tanques (os 6 e 7 comprovadamente) são desativados, bem como o “Armazém” 2 (o único até agora integralmente escavado). Encerra-se, assim, a primeira fase do funcionamento da Fábrica G12. 

A desativação da Oficina F14, no século II, parece-nos plausível se atendermos à quase ausência de ânforas piscícolas cronologicamente situadas entre as primeiras décadas do século III e meados do séculos IV, como a Almagro 50 ou a Almagro 51c, var. B. Teria provavelmente voltado a funcionar durante o Baixo Império, talvez a partir de meados do século IV. A construção de uma cuvette de limpeza do pátio, em opus signinum rico em fragmentos de cerâmica, e de uma outra igualmente de opus signinum do mesmo tipo, que foi assentar sobre o topo do m. 4, já então arruinado, bem como sobre parte dos derrubes do mesmo muro (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1987, pp. 231–232, Fig. 6), testemunham a laboração desta oficina durante o Baixo Império. O seu definitivo encerramento teria ocorrido na passagem do século IV para o V, se aceitarmos esta cronologia para a presença em nível de abandono e derrube de telhado do Tanque 3 (C.4) da forma Hayes 73 A (Silva, 2010), após o que, e ao longo do século V, alguns tanques, ao mesmo tempo que entram em ruinas, são reutilizados como vazadouro de lixos domésticos (Fase IIB). 

3.1. Oficina F14

Elementos relativos à cronologia da plena atividade e dos primeiros derrubes da Oficina F14 foram já apresentados em Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1987. 

Contexto A (Quadro 2). – Os Tanques 6 e 7 teriam sido definitivamente desativados no final da Fase I. Com efeito, formou-se em ambos, sobre o fundo, um nível de abandono (C.3), de areia argilosa castanho-avermelhada, embalando, no primeiro, terra sigillata hispânica, forma Drag. 27, de variante integrável na época de Trajano (Bustamante, 2013, p. 97, Fig. 55), e ânfora Dressel 14 de produção regional, e, no Tanque 7, terra sigillata sudgálica, forma Drag. 18B (Genin, 2007, p. 323), datada por esta autora de 20/30 a 112/120; terra sigillata hispânica, formas Drag.15/17, variante C de Bustamante, que surge na Época Flávia e se desenvolve amplamente durante o século II (Bustamante, 2013, p. 84, Fig. 39), e Drag. 27 (Fig. 23, n.os 1 e 2). 

Sobre essa camada de abandono, repousava um nível com numerosos imbrices, correspondente ao derrube do telhado, sobreposto por blocos de calcário resultantes da queda da parte superior das paredes dos tanques (Fig. 18). 

Quadro 2 – Creiro, 2015. Contextos arqueológicos considerados no presente estudo. 

Fig. 18 – Creiro, 2015. Oficina F14. Tanque 7. Perfil oeste do enchimento. A C.3 (publicada em 1987 como C.2), era um nível de abandono e continha terra sigillata sudgálica, na forma Drag, 18, e hispânica, nas formas Drag. 15/17 e 27. 

Fig. 19 – Creiro, 2015. Oficina F14. Tanque 3. Perfil norte do enchimento. A C.4, nível de derrube de telhado de imbrices, continha terra sigillata africana D, Hayes 73A. 

Contexto D. – Os Tanques 1 e 3 (Fig. 19) possuíam, assente no fundo (que se encontrava bem conservado), nível de derrube do telhado. Esta camada continha terra sigillata africana D, forma Hayes 73A (Camada 4 do Tanque 3 – Fig. 24, n.º 3) e ânforas Almagro 51c, var. C (Fig. 27, n.º 1) e Sado 2 (C. 2 do Tanque 1), datadas na olaria do Pinheiro, a primeira da 2.ª metade do século IV e do século V, e a Sado 2 dos finais do século IV e século V (Mayet & Tavares da Silva, 1998). A forma Hayes 73A de terra sigillata africana D é datada por Hayes (1972, p. 124) de 420 a 475, mas, como nota A. P. Magalhães da Silva (2010, p. 60) tem integrado contextos dos finais do século IV, prolongando-se pelo século seguinte. Assim, a cronologia do final da atividade produtiva da Oficina F14, e se atendermos, como veremos seguidamente, à sequência geral aí observada, poderá situar-se entre os finais do século IV e o 1.º quartel do século V. 

Contexto E (Quadro 2). – Os Tanques 2 (Fig. 20) e 4 apresentavam sobre o fundo, em geral mal conservado, nível formado por derrubes e pela acumulação de lixos domésticos que continham os seguintes materiais datantes: terra sigillata africana D, formas Hayes 61B, 76 e 91B (Fig. 24, n.os 1, 4 e 6); ânforas de fabrico regional, das formas Almagro 51c, var. C (Fig. 27, n.os 2–3), Almagro 51 a–b (Fig. 27, n.os 4–5), Sado 1, var. B (Fig. 27, n.º 6) e Sado 2 (Fig. 27, n.º 7); ânforas das formas Keay XXVII B (Fig. 27, n.º 8) e Keay XXXV B (Fig. 27, n.º 9). 

A terra sigillata africana representada nestas lixeiras indica uma cronologia centrada no intervalo compreendido entre o 2.º e o 3.º quartéis do século V: Bonifay (2004, pp. 171, 179) data a Hayes 61B de 400–450 e a Hayes 91B de meados do século V; a Hayes 76 é datada por Hayes (1972, p. 125) de ca. 425–475. No que se refere à cronologia das ânforas, na olaria do Pinheiro, as formas Sado 1, var. B, Almagro 51c, var. C, Almagro 51 a–b e Sado 2, embora remontem a sua origem, na mesma olaria, as duas primeiras à 2.ª metade do século IV e as duas últimas aos finais do mesmo século, prolongam-se plenamente pelo século V (Mayet & Tavares da Silva, 1998). Por outro lado, as ânforas Keay XXVII B e Keay XXXV B são características do século V: a XXVIIB da primeira metade e a XXXV B dos dois primeiros terços desse século (Bonifay, 2004, pp. 132, 135). 

Como atrás dissemos, a Oficina F14, uma vez abandonada, transformou-se em depósito de lixos domésticos (Contexto E), em uso, provavelmente, até ao 3.º quartel do século V. Deste modo, consideramos que com a desativação da Oficina F14, a Fábrica G12, no seu conjunto, perdeu igualmente a valência produtiva associada aos preparados piscícolas, mas o espaço continuou a ser habitado com carácter doméstico e agropastoril (atenda-se à presença, neste horizonte, de Bos taurus, de acordo com estudo arqueozoológico da autoria de Cleia Detry), ao longo do século V (Fase IIB). 

Fig. 20 – Creiro, 2015. Oficina F14. Tanque 2. Perfil oeste do enchimento. A C.2 era um nível de derrubes e lixeira, contendo terra sigillata africana D nas formas Hayes 61B, 76 e 91B; ânforas Almagro 51c, variante C; Almagro 51 a–b; Sado 1, variante B; Sado 2; Keay XXVIIB e Keay XXXVB e abundante cerâmica comum. 

Fig. 21 – Creiro, 2015. Balneário. Compartimento B1. Perfil noroeste dos Qs. E12-E13. A C.3, nível de derrube de paredes e telhado de imbrices, continha ânfora Almagro 51C e assentava no pavimento (C.4) do compartimento. A C.6 era uma formação coluvionar e continha terra sigillata africana A, Hayes 14 B; ânforas Beltrán II e Dressel 14, variantes B e C; repousava sobre o substrato geológico (C. 7). 

3.2. “Armazém” 2

Contexto B (Quadro 2). – O “Armazém” 2 foi, até ao presente, o único escavado em profundidade.

Sob a C.1, aflorou um nível de derrube de telhado, com numerosos fragmentos de imbrices (C. 2A) e escassos artefactos datantes: terra sigillata hispânica atribuível à forma Drag. 15/17. Esta camada repousava em um nível de abandono (C. 2B), assente no pavimento do compartimento, que continha terra sigillata hispânica (forma indeterminada) e ânfora Dressel 28 (Fig. 23, n.º 12), de pasta francamente micácea e acastanhada, não tendo sido certamente produzida no Baixo Sado. Esta ânfora, relativamente rara em jazidas portuguesas (Banha & Arsénio, 1998, pp. 170–171; Almeida & alii, 2014, Fig. 2), foi produzida na Tarraconense, na Bética e em França entre o final do século I a.C. e a primeira metade do século II (Peacock & Williams, 1986, pp. 149–150); na olaria do Pinheiro, ocorre em contexto do final do século II/inícios do século III, associada à Dressel 14 tardia e à Almagro 51c, var. A (Mayet & Tavares da Silva, 1998). 

A função como armazém deste compartimento está documentada pela exumação na C. 2B de pesos de rede (em chumbo — Fig. 23, n.º 14 —, cerâmica — Fig. 23, n.º 13 — e em concha de Glycimeris glycimeris perfurada no vértice) e de numerosos e grandes fragmentos de duas talhas (Fig. 23, n.º 10) que, pelas suas dimensões, deveriam, quando inteiras, ocupar grande parte da área do armazém. 

O “Armazém” 2 teria sido abandonado (definitivamente) em momento indeterminado do século II. 

3.3. Balneário

Contexto C (Quadro 2). – O pavimento do Compartimento B1 (vestibulum/apodyterium) assentava sobre camada (C. 5), talvez de enchimento e regularização que foi colmatar a vala aberta para receber a Conduta β (Fig. 21). Este nível revelou-se infértil quanto a artefactos datantes. Já a camada imediatamente subjacente (C. 6), de origem coluvionar, continha artefactos exclusivamente do Alto Império, em que a cronologia dos mais recentes — 2.ª metade do século II (terra sigillata africana A, forma Hayes 14B — Fig. 23, n.º 3 —, associada a ânfora Dressel 14, var. C, de fabrico regional, Fig. 23, n.º 11) — representa o terminus post quem para a construção daquele pavimento, de opus signinum com numerosos e grandes fragmentos de cerâmica. 

O pavimento (C.3) do Compartimento B3 (frigidarium), também de opus signinum, mas com fragmentos de cerâmica menos numerosos e de reduzidas dimensões, repousava sobre nível (C.4) sedimentologicamente muito semelhante à C.6 do Compartimento B1, tendo fornecido igualmente artefactos pertencentes somente ao Alto Império (terra sigillata sudgálica e ânforas Dressel 14 de produção regional). Esta C.4 cobria a abóbada da Conduta α. 

No estado atual da investigação sobre o Creiro não é possível determinar a data de construção destas salas, em particular, e do balneário, em geral. Este estaria em obras de remodelação quando foi definitivamente abandonado. Com efeito, atenda-se às acumulações de fragmentos de cerâmica de construção destinados, por certo, à obtenção de opus signinum, que repousavam sobre os pavimentos dos Compartimentos B1 e B2. 

Contexto F (Quadro 2). – A C.4 dos Compartimentos B5 (Fig. 22) e B6, nível com 0,1 m de espessura, de areia argilosa rosada/bege com manchas cinzentas ricas em carvão, que assentava no pavimento, de tijoleiras, do hipocaustum, e que pode corresponder aos últimos momentos da atividade do balneário, continha terra sigillata africana D, forma Hayes 61B (variantes B1 e B2 de Bonifay, datadas por este autor da 1.ª metade do século V — Bonifay, 2004, p. 171). 

Contexto G (Quadro 2). – As camadas de derrube (C.2 dos Compartimentos B2 e B3 e Cs. 2 e 3 dos Compartimentos B1, B4, B5, B6 e B7 — Figs. 21–22) marcam o abandono definitivo do balneário; forneceram terra sigillata africana D (Fig. 24), Hayes 61 B, 64, 73 A, 80 A e 91 B, e ânforas Almagro 51c, var. indeterminada, Almagro 51 a–b e Sado 1, var. B (Fig. 29). Estas ânforas, como atrás referimos, embora ocorram igualmente em contextos do século IV, abrangem o século V. No que respeita à terra sigillata africana D, o século V está bem documentado pela presença das formas Hayes 61 B (1.ª metade desse século — Bonifay, 2004, pp. 170, 171), Hayes 64 (2.ª metade — Hayes, 1972, p. 111), 80 A (meados e 2.ª metade — Bonifay, 2004, p. 173) e Hayes 91B (meados — Bonifay, 2004, p. 179). 

Fig. 22 – Creiro, 2015. Balneário. Compartimento B5. Perfil nordeste do hipocaustum. A C.4, rica em cinzas e carvões, parece corresponder aos últimos momentos de funcionamento do balneário; era sobreposta por níveis de derrube dos pilares (C.3) e do pavimento (C.2) do Compartimento B5. 

Quadro 3 – Creiro, 2015. Cerâmica comum.

* Pasta micácea, cor negra e produção manual. 

 

4. Conclusões

As escavações arqueológicas que o MAEDS efetuou no Creiro permitiram identificar uma unidade fabril de salga de peixe da época romana não reduzida à oficina de produção propriamente dita, mas integrando, para além desta, outras instalações quer ligadas à armazenagem (de sal e outras produtos que entrariam na preparação das salgas e molhos; de ânforas vazias ou já repletas de preparados piscícolas a aguardar embarque a partir da baía do Portinho da Arrábida…) quer com caráter habitacional e/ou administrativo (Edifício H). Pôs-se ainda a descoberto elementos de um sistema hidráulico (poço, condutas de água e cisterna) e um balneário. 

A atividade produtiva do Creiro não se limitava à desenvolvida na Fábrica G12, pois existiriam outras unidades de produção, como a Oficina K10, cuja escavação iniciámos, as quais poderiam ser também servidas pelo sistema hidráulico e pelo balneário identificados. 

Esta reunião de diversas valências funcionais em uma só unidade fabril parece contrastar com o observado em outros complexos “industriais”, como o de Sines (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 2006) onde, por hipótese, os armazéns e a administração correspondentes a diversas oficinas de produção estariam concentrados em local separado da área produtiva. Esta diferenciação entre a produção e a comercialização foi igualmente sugerida por Etienne & Mayet (2002, p. 104) para a organização de pequenos estabelecimentos de fabrico de salga de peixe de Almuñecar datados da Época Púnica. 

Uma das mais prementes questões que podemos colocar sobre a Fábrica G12 (na sua fase alto-imperial), prende-se com o regime de propriedade. Seria estatal ou privada? O facto de a fábrica se encontrar murada, confinando com outra(s) igualmente murada(s) e possuir um edifício provavelmente com funções habitacionais e/ou administrativas parece sustentar a hipótese da propriedade privada (Etienne & Mayet, 2002, p. 105). A escavação em profundidade do Edifício H, se se vier a confirmar o seu caráter habitacional, poderá fornecer-nos elementos que permitam determinar o estatuto socioeconómico dos seus habitantes. 

A Fábrica G 12 revela duas fases de funcionamento. A primeira ter-se-ia iniciado no 3.º quartel do século I (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1987) e concluído em momento indeterminado do século II, período durante o qual funcionou plenamente, tendo utilizado como ânfora piscícola a Dressel 14. 

A segunda fase teria começado, presumivelmente, na 2.ª metade do século IV e terminado no 1.º quartel do século seguinte. Com esta segunda fase (IIA) teria ocorrido a redução da área de funcionamento fabril, situação verificada em outros estabelecimentos de preparados de peixe, como a Oficina A do Largo João de Deus, em Sines (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 2006). 

Durante o 2.º e 3.º quartéis do século V, o local, com a fábrica já desativada, continuou a ser ocupado, pelo que alguns tanques da Oficina F14 são então reutilizados como vazadouro de lixos domésticos (Fase IIB). 

A imagem que nos chega do ambiente edificado existente na segunda dessas fases é de grande degradação. Só parte da oficina, já meio arruinada (ver Corte B, de 1987 — Silva & Coelho-Soares, 1987, pp. 231–232, Fig. 6), é reativada; o “Armazém” 2 (o único escavado em profundidade) encontrava-se abandonado. O Creiro não é um caso isolado no que respeita a essa imagem de degradação datada da 2.ª metade do século IV e do século V. Por exemplo, nas últimas fases da unidade de preparados de peixe da Casa do Governador da Torre de Belém (Lisboa), enquanto “boa parte da fábrica se encontraria destelhada e, portanto, destinada a outros usos que não a sua primitiva função ou simplesmente abandonada”, alguns tanques “estariam ainda dedicados à produção de preparados de peixe” (Filipe & Fabião, 2006–2007, p. 113). 

O balneário é definitivamente abandonado também no século V. 

Durante a segunda fase, as ânforas mais utilizadas para conter os preparados de peixe produzidos na Fábrica G12 são a Almagro 51c, var. C, a Almagro 51 a–b e a Sado 1, var. B, tal como em Tróia, onde estas formas representam “ a tríade típica dos níveis tardios” (Almeida & alii, 2014, p. 419). Chegam ao Creiro, na mesma fase, ânforas importadas (Keay XXVII B e Keay XXXV B), juntamente com terra sigillata africana. 

Fig. 23 – Creiro, 2015. Fase I. Contextos A (n.os 1, 2, 4 e 6), B (n.os 5, 7–10 e 12–14) e C (n.os 3 e 11). Terra sigillata sudgálica (n.º 1), hispânica (n.º 2) e africana A (n.º 3); cerâmica comum (n.os 4–10); ânfora Dressel 14 (n.º 11) e Dressel 28 (n.º 12); pesos de rede em cerâmica (n.º 13) e em chumbo (n.º 14)

Desenhos de Susana Duarte e Ana Castela. 

Fig. 24 – Creiro, 2015. Fase II. Contextos D (n.º 3), E (n.os 1, 4, 6 e 7) e G (n.os 2, 5, 8–9). Terra sigillata africana D: Hayes 61B (n.os 1 e 2), 73A (n.º 3), 76 (n.º 4), 80A (n.º 5), 91B (n.º 6) e com decoração estampada (n.os 7–9).

Desenhos de Susana Duarte e Ana Castela. 

Fig. 25 – Creiro, 2015. Fase II. Contextos D (n.º 6) e E (n.os 1–5, 7–9). Cerâmica comum. Desenhos de Susana Duarte e Ana Castela. 

 

Fig. 26 – Creiro, 2015. Fase II. Contextos D (n.º 7) e E (n.os 1–6, 8 e 9). Cerâmica comum. Desenhos de Susana Duarte e Ana Castela. 

 

O estabelecimento do Creiro integrava certamente o importante centro fabril de preparados piscícolas do Baixo Sado, dominado por Caetobriga (Setúbal e Tróia), onde, na produção de salgas de peixe e dos contentores que as transportavam, estão bem patentes as duas fases representadas no Creiro. De notar, porém, que enquanto em Tróia (Etienne & alii, 1994), bem como nas olarias romanas do Sado (Mayet & Tavares da Silva, 1998, 2002), a segunda fase, de profunda reestruturação, ocorre logo a partir do século III, no Creiro parece iniciar-se somente na 2.ª metade do século IV, à semelhança do que teria acontecido na Travessa de Frei Gaspar, em Setúbal, onde a oficina de produção de salga de peixe é reativada, parcialmente, nunca antes da 2.ª metade do século IV/século V (Tavares da Silva & alii, 1986). 

A fundação do complexo fabril do Creiro, aparentemente isolado na faixa costeira da Serra da Arrábida, quando um pouco mais a montante existia o grande centro produtor de Setúbal e Tróia, é explicável numa lógica de comunicação aquática e de exploração sistemática e exaustiva de um território colonizado. Seria, assim, impensável desperdiçar os recursos naturais da baía do Portinho da Arrábida que comportavam desde a riqueza piscícola às excecionais condições de caráter portuário. A mesma lógica teria presidido, aliás, à criação do rosário de pequenos estabelecimentos fabris que integravam, além do Creiro, a Comenda, a Rasca e Sesimbra. 

Fig. 27 – Creiro, 2015. Fase II. Contextos D (n. 1) e E (n. os 2–9). Ânforas: Almagro 51c, var. C (n.os 1–3); Almagro 51 a–b (n.os 4–5); Sado 1, var B (n.º 6); Sado 2 (n.º 7); Keay XXVII B (n.º 8); Keay XXXV B (n.º 9). Desenhos de Ana Castela. 

Fig. 29 – Creiro, 2015. Fase II. Contexto G. Cerâmica comum (nos 1–11) e ânforas: Sado 1, var. B (n.º 12) e Almagro 51a–b (n.º 13).

Desenhos de Ana Castela. 

 

Fig. 28 (à esquerda)– Creiro, 2015. Balneário. Compartimento B5. Elementos tubulares em cerâmica provenientes da C. 3 (derrubes dos pilares das suspensurae) – n.os 1 e 2 – e da C. 4 (derrubes finos, entre os pilares das suspensurae) – n.º 3.

Desenhos de Ana Castela. 

 

Creiro (Arrábida): um estabelecimento de produção de preparados de peixe da Época Romana

Carlos Tavares da Silva e Antónia Coelho-Soares
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A influência Romana no Sado

Caetobriga: uma cidade fabril e polinucleada na foz do Sado

Introdução. Caetobriga: uma cidade fabril e polinucleada na foz do Sado

 Caetobriga. O sítio arqueológico da Casa dos Mosaicos (Setúbal Arqueológica, Vol . 17, 2018), p. 11-42

Joaquina Soares - Carlos Tavares da Silva

 Introdução

Até às intervenções de arqueologia urbana desenvolvidas pelo Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal (MAEDS), no âmbito do projecto de investigação sobre as preexistências de Setúbal, a partir de meados dos anos 70 do século XX, o paradigma dominante situava Caetobriga em Tróia. As ruinas de uma cidade antiga na margem esquerda da foz do Sado, que André de Resende (1593) visitou e muito provavelmente baptizou de Tróia no ambiente renascentista da segunda metade de quinhentos (quiçá por inspiração dos textos homéricos), seriam igualmente motivação, em pleno Romantismo, para a fundação, em Setúbal, da Sociedade Archeologica Lusitana com o propósito da escavação e estudo daquela jazida e da criação de museu monográfico.

 De entre o numeroso espólio móvel que foi sendo exumado das “ruínas” de Tróia, durante as escavações antigas, reproduzimos aqui a ânfora Dressel 14 publicada por Gama Xaro em 1860, no Archivo Pittoresco (Fig. 1) e a taça de prata então depositada na residência do duque de Palmela (Fig. 2), publicada no vol. I dos Annaes da Sociedade Archeologica Lusitana, p. 4-8, a que foi atribuída significado religioso, face à presença de decoração relevada com figuras mitológicas “vermiculadas de ouro” (SAL, 1851, p. 19), em que se destacam elementos marinhos e o tridente associado a Neptuno. Teria pertencido ao conteúdo de “um pequeno caixão de chumbo” posto a descoberto pela erosão fluvial no inverno de 1814.

 “Na margem esquerda do Sadão, e não longe da foz do mesmo, jazem dispersas as ruinas de uma cidade, que os antiquários suppõem ser a antiga Cetobriga. Não é possível andar por entre aquellas ruinas; achar alli com pasmosa facilidade moedas romanas; vêr na extensão de quasi uma legoa os destroços dos edifícios; encontrar agora fragmentos de amphoras; logo lâmpadas de barro; aqui troços de marmore; acolá vasos de diferentes feitios; não é possível, dizemos nós, vêr, examinar e estudar tudo isto, sem que ao mesmo tempo se sinta nascer e crescer na alma um sentimento de curiosidade, um desejo intenso de explorar estas ruinas, e investigar a causa que as produziu, visto que os livros sómente nos dizem que por alli existira uma cidade, que tinha o nome de Cetobriga. 

“Como desapareceria Cetobriga? Cairia por decadência do commercio e abandono sucessivo? 

 “Que lição nos estão dando suas ruinas? Attestarão os efeitos da guerra? Estarão alli como exemplo da punição de grandes erros? Quem o sabe?! Seria talvez um cataclismo, uma irrupção violenta do mar, um terremoto que subvertesse a cidade? Estarão alli sepultadas as riquezas de seus habitantes? Por que se não ha de fazer alli uma excavação? Oh! as ruinas são sempre uma página sublime do grande livro da Humanidade! Mal haja quem as não estuda, quem as não compreende, quem compreendendo-as não aproveita suas lições!”

SAL, 1850, p. 2-3

Introdução

Os achados romanos da área urbana de Setúbal (Fig. 3) identificados por José Marques da Costa, em 1957 (Costa, 1960), ao longo de cerca de 700m da margem direita da baía, não lograram alterar aquele paradigma. O achado mais notável, e com maior impacto na opinião pública, dessa extensa visitação ao subsolo arqueológico de Setúbal, ocorreu na Rua Fran Paxeco (antiga Rua Direita de Tróino) e consistiu em: ânfora fragmentada e não recuperada com um tesouro monetário de que foi possível recolher 11091 numismas, depositados no Museu do Convento de Jesus; ânfora completa (Fig. 3C) da forma Beltran 65A (Coelho-Soares & Tavares da Silva, 1978), contendo um tesouro de 7091 moedas do século IV d. C., depositado no mesmo museu. As 18181 moedas recuperadas foram estudadas e publicadas em 1975 pelo coronel J. A. de Carvalho Fernandes, que concluiu serem todas de bronze (médios e pequenos bronzes) e, com raras excepções, respeitarem à “Casa de Constantino Magno e Sucessores”. Exceptuando um exemplar de 187 a 155 d. C., os restantes numismas foram cunhados entre 253 e 363 d. C. Estes achados numismáticos apontam, como outros indicadores arqueológicos, para a crise e insegurança que se instalou, na Setúbal romana, na segunda metade do séc. IV. 

Fernando Bandeira Ferreira (1959) considerou os achados romanos de Setúbal como depósitos secundários associados a operações de secagem de sapais e desvalorizou publicamente as observações de J. Marques da Costa, usando o infeliz argumento de Magister Dixit. Fernando Bandeira Ferreira localiza então Caetobriga no castro sidérico de Chibanes, o que respondia aos pressupostos do sufixo briga de origem celta, significando colina eventualmente fortificada, e propõe a sua migração para Tróia no período romano imperial, quando o sítio de Chibanes foi abandonado; persiste, apesar das evidências materiais postas a descoberto por José Marques da Costa, na ideia de que não existia qualquer estabelecimento estável na margem direita da foz do Sado. Fernando Castelo-Branco (1954, 1963) apoia a hipótese de localização de Caetobriga defendida por F. Bandeira Ferreira, muito embora reconheça a existência em Setúbal de “um pequeno povoado lusitano-romano” sem escala para corresponder à cidade de Caetobriga. 

Fig. 1 – Ânfora Dressel 14 de Tróia, publicada por Gama Xaro, membro fundador da Sociedade Archeologica Lusitana, em 1860, no Archivo Pittoresco. 

Fig. 2 – Taça em prata então depositada na residência do duque de Palmela, muito provavelmente proveniente de contexto funerário de Tróia e publicada pela Sociedade Archeologica Lusitana em 1851 (SAL, 1851, p. 19). 

fig2Caetobriga

Fig. 3 – A-Distribuição dos vestígios romanos observados por José Marques da Costa, quando das obras de saneamento básico de 1957 (Costa, 1960); B-confirmação do mapa anterior pelo projecto “Preexistências de Setúbal”, desenvolvido pelo MAEDS, onde se assinalam os principais contextos romanos escavados e publicados. C- ânfora tardo-romana (Beltran 65A) encontrada na Rua Fran Paxeco, em 1957, repleta de moedas datadas do século IV (Fernandes, 1975).

Fig. 4 – Principais intervenções arqueológicas desenvolvidas pelo Museu de Arqueologia e Etnografia do Distrito de Setúbal, na área urbana de Setúbal:

1 – Rua Francisco Augusto Flamengo, 10-12;
2 – Travessa dos Apóstolos;
3- Rua Arronches Junqueiro 32-34;
4 – Rua Arronches Junqueiro 73-75;
5 – Rua António Joaquim Granjo;
6 – Rua António Joaquim Granjo, 19 (Casa dos Mosaicos);
7 – Travessa de João Galo, 4-4B;
8 – Largo da Misericórdia;
9 – Travessa de Frei Gaspar;
10 – Travessa da Portuguesa;
11 – Av. Luisa Todi (edifício BCP);
12 – Rua Major Afonso Pala;
13 – Rua Álvaro Castelões;
14 a 16 – Rua António Januário da Silva;
17 – Rua Serpa Pinto;

18 – Avenida 5 Outubro;
19 – Rua Luís de Camões;
20 – Praça de Bocage / Av. Luisa Todi (edifício Montepio);
21 – Praça de Bocage;
22 – Largo do Sapalinho;
23 – Praça de Bocage/Loja Chiado;
24 – Rua de Bocage / Rua Augusto Cardoso (edifício daVinícola/Benetton);
25 – Beco de Dona Maria;
26 – Av. 22 de Dezembro;
27 – Rua Augusto Cardoso;
28 – Praça Miguel Bombarda/Largo do Convento de Jesus;
29 – Rua Acácio Barradas, 2;
30 – Rua António Maria Eusébio;
31 – Praça Machado dos Santos/Largo da Fonte Nova;
32 – Largo António Joaquim Correia;
33 – Baluarte da Nossa Senhora da Conceição;
34- Av. Luisa Todi, nos. 170-178;
35-Av. Luisa Todi, 266-272/Largo da Ribeira Velha.

As intervenções arqueológicas realizadas pelo MAEDS na área urbana de Setúbal (Fig. 4) vieram precisamente comprovar a existência de uma povoação romana (Fig. 5), tendo a distribuição dos seus vestígios ocupado não só o subsolo do burgo medieval muralhado, mas também o dos arrabaldes de Troino e Palhais, em uma extensão linear com cerca de 700m. 

Porém, tão importante quanto a identificação da Setúbal romana foram os estudos sobre a presença romana a uma escala regional promovidos e/ou participados pelo MAEDS, nomeadamente na Ilha do Pessegueiro (Tavares da Silva & Soares, 1993), área urbana de Sines (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 2006), castelo de Alcácer do Sal (Tavares da Silva et al, 1980-81), Península de Tróia (Étienne, Makaroun, & Mayet, 1994; Mayet & Tavares da Silva, 2000a; Soares, 1980; Soares & Tavares da Silva, 2012), olarias romanas da margem direita do Sado (Coelho-Soares & Tavares da Silva, 1979; Mayet & Tavares da Silva, 1998, 2002, 2010, 2016; Mayet, Schmitt & Tavares da Silva, 1996), calçada romana do Viso (Tavares da Silva & Soares, 1986), estabelecimento do Creiro (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 2016; Detry & Tavares da Silva, 2016), que permitiram a obtenção de uma visão coerente sobre a romanização à escala do Baixo Sado (Fig. 6); só a esta escala seria possível pensar Caetobriga como uma cidade polinucleada, cujo principal núcleo administrativo se teria situado no território da actual cidade de Setúbal, mas cujos principais sectores produtivos da fileira de preparados piscícolas se localizariam, por um lado, em Tróia (oficinas de salgas e molhos de peixe), e, por outro, na margem direita do Sado (olarias de ânforas) a jusante de Alcácer do Sal, pontuando com as suas manchas florestais e cais o rebordo do extenso salgado que, com a riqueza piscícola da região, fizeram a fortuna de Caetobriga, cidade de artérias aquáticas. 

Destacamos de entre as numerosas escavações de arqueologia urbana levadas a efeito pelo MAEDS, pelos significativos contributos trazidos a esta problemática, as intervenções, dirigidas pela signatária e por Carlos Tavares da Silva, que a seguir se apresentam resumidamente (Fig. 3B), excluída a não menos importante escavação realizada no nº 19 da Rua António Joaquim Granjo, “Casa dos Mosaicos”, precisamente objecto da presente monografia, e que forneceu uma ocupação desde a Idade do Ferro orientalizante ao período medieval islâmico. 

Fig. 5 – Localização de Caetobriga (Setúbal) no Sudoeste da Península Ibérica, em mapa de Mantas, 1999, adaptado. 

(a laranja) Fronteira de província 

(a verde) Fronteira de conventus 

1 – Barrosinha;
2 – Alcácer do Sal (Salacia);
3 – Bugio;
4 – Enchurrasqueira;
5 – Abul; 6 – Pinheiro;
7 – Zambujalinho;
8 – Santa Catarina;
9 – Quinta da Alegria;
10 – Pedra Furada;
11 – Setúbal (Caetobriga);
12 – Alferrar;
13 – Pedrão;
14 – Chibanes;
15 – Painel das Almas (Azeitão);
16 – Comenda;
17 – Rasca;
18 – Outão;
19 – Creiro;
20 – Sesimbra;
21 – Tróia. 

Fig. 6 – Localização de Caetobriga (Setúbal), no contexto arqueológico da ocupação da época romana do Baixo Sado: Adaptado de Soares, 2008. 

Travessa de Frei Gaspar

A intervenção arqueológica, realizada em 1979, abrangeu cerca de 120m2, área pertencente a um lote do centro histórico (contíguo ao edifício da Caixa Geral de Depósitos), onde se localiza actualmente uma oficina de turismo em “co-habitação” com oficina de preparados de peixe da época romana. 

Na metade nascente do lote, directamente sobre as areias de restinga que do sopé da colina de Santa Maria se estendia até à actual Praça de Bocage, localizou-se o peristilo de uma habitação de meados/terceiro quartel do século I d. C.. A camada de ocupação correspondente ao peristilo foi cortada pelo muro de delimitação de uma oficina de preparados piscícolas construída muito provavelmente no período flaviano (Fig. 7), com a “clássica” planta em U ou em L e revestimento de tanques e pátio por argamassa muito compacta e impermeável, constituída por fina brita calcária ligada por cal e areia. Esta oficina (de acordo com os primeiros estudos, neste momento em revisão) ter-se-á mantido em funcionamento possivelmente até à transição para o século III. Nos séculos III-IV foi abandonada e os seus tanques transformados em vazadores de lixo. No século V, alguns tanques receberam novos fundos e voltaram a funcionar (Tavares da Silva, Soares & Coelho-Soares, 1986). 

Fig. 7 – Oficina de preparados de peixe da Travessa de Frei Gaspar (Setúbal). Séculos I-V. Seg. Tavares da Silva, Soares & Coelho-Soares, 1986. 

A- Planta da área escavada com o peristilo de uma habitação de meados/terceiro quartel do século I d.C. (I), cuja camada de ocupação foi cortada pelo muro de delimitação de oficina de preparados piscícolas (II), construída muito provavelmente no último quartel do século I.

Embora incompleta, pode verificar-se que a oficina possuía uma planta em U, ou em L, cujo pátio abriria para oeste (sob o arruamento actual) e que na base do U, além dos grandes tanques de salga revestidos por argamassa de cal, areia e brita calcária, destinados provavelmente à produção de salsamenta, possuía uma fiada de seis pequenos tanques, presumivelmente destinados à manufactura de molhos de peixe.

B- Aspecto da oficina durante a escavação.

C – Lucerna paleocristã proveniente da C.6 do Tanque 8; tipo Atlante VIII, grupo C, atribuível ao século V d.C. (Bonifay, 2004, p. 360).

D – integração da jazida romana em imóvel de informação turística;
1 – tanques destinados à produção de molhos,
2 – grande tanque destinado à produção de salsamenta,
3 – páteo da oficina. 

Praça de Bocage

A escavação arqueológica (Fig. 8), realizada em 1980, abrangeu a metade sul da placa central da praça, em cerca de 98m2 (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1980-81), no âmbito do programa da sua repavimentação. Estes trabalhos revelaram a existência de uma praia frequentada desde a primeira metade do século I d. C. e a edificação de uma oficina de produção de preparados piscícolas, na segunda metade do mesmo século, que tinha a particularidade de integrar dois tipos de tanques separados por corredor: tanques revestidos por argamassa de cal, areia e brita calcária, destinados ao fabrico de salgas (tanque I), e tanques sem revestimento de qualquer tipo e com fundos impermeabilizados por argila que poderiam ter sido destinados a depósito de água e eventualmente de peixe e que por enquanto só possuem paralelos em fábricas de salga da Bretanha. No amplo pátio da fábrica foi edificado, num segundo momento construtivo, um compartimento quiçá com dois pisos, pois conservou-se o embasamento da caixa de escada, posteriormente subdividido. A oficina laborou até ao final do século II e foi abandonada, transformada em depósito de lixos, durante os séculos III-IV. O tanque I foi reutilizado como habitação durante a Idade Média. Estas estruturas viriam a ser cobertas por camada de areias de origem fluvio-marinha antes da construção da muralha afonsina; a partir do século XVI, o local sofreu uma ocupação funerária, enquanto adro da igreja de S. Julião. 

Fig. 8 – Estabelecimento fabril de salgas de peixe da Praça de Bocage (Setúbal). Séculos I-II. 

fig8Caetobriga

A- Planta da oficina de salgas; 

C – Aspectos da área escavada;

E – Tanque I, revestido interiormente por argamassa de cal, areia e brita calcária; 

B – Aspectos da área escavada; 

D- Tanques III e IV (sem revestimento nas paredes e fundos); 

F – Em primeiro plano, aspectos do Tanque II e do Compartimento A. Seg. Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1980-81, modificado.

Largo da Misericórdia

Intervenção arqueológica suscitada pela reedificação de lote urbano no lado sul do Largo da Misericórdia, em 1988, com uma área de cerca de 90m2. 

A escavação revelou uma estratigrafia com mais de 2m de potência, tendo como substrato  areias de praia. A primeira fase de ocupação do local iniciou-se no reinado de Tibério (Fig. 9) e prolongou-se até ao século VI (Fig. 10). Registou-se ainda a presença de níveis do período islâmico, Baixa Idade Média e Idade Moderna. 

Na base da sequência estratigráfica foi identificada uma olaria, da qual se escavaram dois fornos geminados, cujas câmaras de aquecimento, de planta circular e com cerca de 3m de diâmetro interno, pertencem ao tipo a da classificação de P. Duhamel, com canais principal e secundários ao mesmo nível. Estes fornos funcionaram durante o período Tibério-Claudio, tendo revelado duas fases de laboração, separadas por curto hiato talvez motivado por trabalhos de reparação. Produziram ânfora Dressel 14 variante A e talvez ainda ânforas lusitanas precoces que, pela sua evolução, teriam originado aquela. 

Este achado veio situar os inícios do ciclo de produção de preparados piscícolas no estuário do Sado no período Tibério-Claudio, muito embora as oficinas de salgas de peixe mais antigas até agora escavadas na área urbana de Setúbal sejam um pouco mais tardias, datando da época flaviana, auge deste ciclo de desenvolvimento económico. A cronologia então proposta (Tavares da Silva, 1996) para o início do ciclo de produção de preparados piscícolas pode agora ser recuada para o período Augusto-Tibério graças à descoberta de entulheira de presumível olaria de produção de ânforas, na Rua António Joaquim Granjo, nº 19. O padrão locativo dos fornos de ânforas do Largo da Misericórdia permitiu defender uma estratégia de integração vertical da produção de salgas e da manufactura de ânforas nos inícios do Império, modelo que seria substituído pelo da organização da produção de salgas de peixe em grande escala, a partir da segunda metade do século I, com a produção anfórica também em grande escala, como na Herdade do Pinheiro (Mayet & Tavares da Silva, 1998), sectorial e fisicamente dissociada dos estabelecimentos de preparados piscícolas, e nas proximidades das matérias-primas (barreiros e floresta) e com acesso a transporte fluvial (Tavares da Silva, 1996, p. 49). 

Proveniente do topo da sequência da ocupação romana do Largo da Misericódia, atribuível à Antiguidade tardia dos séculos V-VI, há a registar o aparecimento de um capitel de influência bizantina  com quatro folhas nervuradas e cálato em V, com paralelos em exemplares de Salacia no que concerne à decoração vegetalista (Limão, 2010). Esta peça confirma a informação, fornecida pela cerâmica de importação, respeitante à chegada ao porto de Caetobriga de materiais de origem norte-africana e oriental em momento avançado da Antiguidade tardia, assinalando o fim do ciclo do sistema económico marítimo em que o sudoeste da Lusitânia se havia especializado (Edmondson, 1987). 

 

Fig. 9 – Largo da Misericórdia (Setúbal).

A-B – Planta e foto da base de dois fornos geminados de produção anfórica. Foram construídos durante o período de Tibério e mantiveram-se em funcionamento durante o período Tibério-Claudio.

C – Ânforas, Dressel 14, var. A, e talvez ânforas lusitanas precoces aí produzidas. Seg. Tavares da Silva, 1996. 

Fig. 10 – Largo da Misericórdia (Setúbal). Capitel (séc. V-VI) de concepção bizantina. Foto de Rosa Nunes. 

Travessa de João Galo, nºs 4-4B

Escavação arqueológica realizada em 1997, em uma área de cerca de 35m2. Neste lote do centro histórico de Setúbal, localizado no sopé da colina de  Santa Maria, identificou-se uma camada de areia de praia com materiais do período orientalizante, subjacente aos estratos da ocupação romana imperial. Durante a segunda metade do século I e século II o local foi ocupado por armazém de ânforas da forma Dressel 14, certamente associado a oficina de produção de preparados piscícolas existente no exterior do lote intervencionado e não muito distante do porto natural da baía de Setúbal. Ainda no século II, e após o abandono do armazém de ânforas, foi construído um edifício monumental virado para uma praça, do qual identificámos parte do podium e elementos arquitectónicos, nomeadamente uma cornija em calcário de grandes dimensões (Fig. 11). Este edifício colapsou na transição para o século III, provavelmente em consequência de sismo. A ocupação do local prolongou-se até aos séculos VI-VII, com uma cultura material de forte tradição romana; Setúbal continuava a receber influências e produtos externos provenientes da actual Tunísia (terra sigillata africana D), a que se juntaram importações da Narbonense (cerâmica estampada cinzenta) e da actual Turquia (sigillata foceence tardia, LRC) (Fig. 12) (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 2014). 

 Fig. 11 – Travessa de João Galo, 4-4B (Setúbal).

A – Perfil estratigráfico: a C. 9 corresponde ao piso de ocupação em correlação com o armazém de ânforas Dressel 14, em funcionamente desde a segunda metade do século I à primeira metade do século II; o piso da C.7, em correlação com o edifício monumental, da segunda metade do século II, foi destruído por grandes fossas (C.5), associadas ao desmantelamento e aproveitamento de pedra de construções anteriores, fossas datáveis dos séculos IV-V; a C.2, formada após o abandono do pavimento da C. 3, corresponde a uma lixeira doméstica do século VI, com possível prolongamento pelo século seguinte. 

B- Cornija de grandes dimensões, com c. de 3 toneladas, do edifício monumental do século II. Seg. Tavares da Silva e Coelho-Soares, 2014. 

Fig. 12 – Travessa de João Galo (Setúbal).

Materiais do século VI (Fase V).

Sigillata africana D (nos 1 a 9), sigillata foceense tardia (nº 10), e cerâmica estampada cinzenta (nos 11 e 12).

Desenho de Susana Duarte in Tavares da Silva & Coelho-Soares, 2014.

Rua Francisco Augusto Flamengo, nºs 10-12

A escavação arqueológica decorreu em duas campanhas que tiveram lugar em 2008-2010 e abrangeram uma área de cerca de 250m2 (Fig. 13A) (Tavares da Silva et al., 2010, 2014). Esta escavação revelou uma ocupação de ampla diacronia (Fig. 13B). No que respeita à ocupação da época romana, localizou-se uma lixeira datada da 2ª metade do século I e do século II d. C. Os materiais proporcionados por esta lixeira revelaram um domínio da terra sigillata sudgálica no conjunto das cerâmicas finas de mesa  1 (Fig. 14). As ânforas encontradas documentam a diversificada actividade comercial da Setúbal romana: vinho do Egeu (ânfora da classe 9 de Peacock/Williams), da Península itálica (ânfora Dressel 2-4), do sul da Gália (Gaulesa 4) e do sul de Espanha (Haltern 70); azeite do vale do Guadalquivir (Oberaden 83); salsamenta de produção local, embalada em ânforas Dressel 14; um exemplar conserva ainda os restos esqueléticos de sardinha miúda (Gabriel & Tavares da Silva, 2016) (Fig. 15). 

Após a selagem do vazadouro em fase quiçá precoce do século II, foi construído nas proximidades, em momento impreciso, um grande reservatório de água (Fig. 16), com uma capacidade superior a 250m3. A partir de meados do século IV, a limpeza e manutenção do reservatório revelam-se pouco eficientes. Na base do seu enchimento (C.14), surge terra sigillata africana D (Hayes 61A) associada a ânfora Almagro 51c, variante B. A parte superior do seu enchimento ter-se-ia formado no século V, tal como foi sugerido por alguns materiais como: sigillata africana D (Hayes 91A), ânforas Almagro 51c, Almagro 51a-b e Sado1. Após um prolongado abandono, o lote viria a ser ocupado como necrópole, no período islâmico (séculos X-XI). Nos séculos XIII-XIV depositaram-se no local várias lixeiras domésticas, e embora o lote tivesse sido incluído no interior da cerca afonsina (Fig. 13A), somente a partir da Idade Moderna passa a ser utilizado com finalidade residencial. 

1 – É importante assinalar que mesmo na camada atribuível ao século II, a terra sigillata hispânica é muito rara, o que pode ser explicado pela prevalência do comércio marítimo sobre o terrestre, expectável em um aglomerado portuário como Caetobriga. No entanto, uma cronologia precoce dentro do século II para a camada de selagem da lixeira é admissível, considerando a elevada frequência de terra sigillata sudgálica nessa camada.

Fig. 13 – Rua Francisco Augusto Flamengo nºs 10-12 (Setúbal).

A- Localização do lote;

B-Perfil estratigráfico do Locus A, cuja base assentou sobre arenito pliocénico:
Cs. 14 a 11-sedimentos de origem coluvionar com materiais exclusivamente pré-romanos resultantes da erosão e transporte de níveis arqueológicos sidéricos;
C. 10- escorrências do substrato geológico;
Cs. 9-7- níveis de ocupação romana;
C. 6- formação descontínua constituída por fossas funerárias do período islâmico;
C. 5- escorrências do substrato geológico;
C. 4- terraplenagem do lote com mobilização de camadas de ocupação romana de cotas superiores.
Cs. 3-1- pavimentos da época contemporânea. Seg.
Tavares da Silva et al., 2014. 

Fig. 14 – Rua Francisco Augusto Flamengo nºs 10-12 (Setúbal), lixeira alto-imperial.

A – Marcas de oleiro em terra sigillata sudgálica.

1-[…] VSI;

2- OF PATRICI;

3- ISA[…];

4- BIOFECIT.

B – Marcas de oleiro em terra sigillata hispânica.

1- […]E. FIRM, do oleiro Valerius Firmus (forma Drag.27);

2 e 3- PET EROOFI, do oleiro Petronius Eros (formas indeterminadas).

Desenhos de Susana Duarte e Ana Castela in Tavares da Silva et al., 2014. 

Fig. 15 – Rua Francisco Augusto Flamengo nºs 10-12 (Setúbal).

Lixeira alto-imperial.

Ânfora Dressel 14 da variante C. Continha restos esqueléticos de sardinha miúda em conexão anatómica (salsamenta).

Seg. Tavares da Silva et al., 2014. 

Fig. 16 – Rua Francisco Augusto Flamengo nºs 10-12 (Setúbal).

Planta parcial de reservatório de água da época romana.

Seg. Tavares da Silva et al., 2014.

Rua Arronches Junqueiro, nº 75

Em uma pequena sondagem de cerca de 9m2 (dada a exiguidade do lote), realizada em 2009, no nº. 75 da Rua Arronches Junqueiro, vertente oeste da colina de Santa Maria, identificaram-se vestígios do peristilo de uma domus, cuja galeria, muito provavelmente porticada, foi pavimentada a opus tessellatum e bordejada por espelho de água. Estes importantes testemunhos arquitectónicos (Fig. 17) prolongavam-se pelo edifício contíguo a poente, que foi objecto de renovação, com reforço estrutural de paredes, em 2015/2016, sem que, estranha e lamentavelmente, tivesse ocorrido acompanhamento arqueológico. 

O mosaico é de estilo geométrico e de movimento tridimensional, apresentando cores vivas (vermelho e ocre) e composição complexa organizada a partir de estrelas de oito pontas losângicas, enquadradas por rectângulos de entrançados; na cercadura exterior pode ver-se uma banda de ogivas e escamas, onde o vermelho é dominante. Foi datado da transição para o século III. Os derrubes que cobriam o mosaico sugerem o colapso do edifício durante o século V/VI (LRC na forma Hayes 3B, ânforas lusitanas das formas Almagro 51c, variante C, Almagro 51a-b e ânfora globular LRA2/ Keay LXV) (Fig. 18) (Tavares da Silva, Soares & Wrench, 2010). 

Caetobriga: Setúbal e Tróia

A Caetobriga (Figs. 5 e 6), referida por Ptolomeu 2 e localizada de acordo com o Itinerário de Antonino na desembocadura do Sado, dependia administrativamente de Salacia, principal aglomerado urbano do estuário do Sado, capital de civitas. O farol designado por “Torre dos Salakeinoi” no papiro  de Artemidoro, de finais do século II a. C. (Gallazi et al., 2008) é justamente localizado na desembocadura do Sado por Jorge de Alarcão (Alarcão, 2011), muito provavelmente no Outão. 

Porém, o poder económico de Salacia viria a transferir-se para Caetobriga (Tavares da Silva et al, 1980-81). Atenda-se, por exemplo, ao facto dos centros oleiros da Estrada da Parvoíce (Pimenta, Ferreira & Cabrita, 2016), Barrosinha e Bugio (Mayet, Schmit & Tavares da Silva, 1996) do círculo portuário imediato de Salacia não terem sobrevivido ao século II, ao contrário do observado nas olarias a jusante, que associamos a Caetobriga. 

A referida deslocalização do polo de desenvolvimento económico para jusante resultou por certo da maior acessibilidade de Caetobriga quer aos recursos piscícolas, quer aos mercados consumidores de salgas e molhos de peixe, em cenário de crescente dinâmica de assoreamento do rio (Freitas e Andrade, 2008). Estes factores teriam contribuído para a emergência e desenvolvimento de uma cidade marítima e polinucleada na foz do Sado. Ao núcleo de origem sidérica da margem norte do estuário (Tavares da Silva & Soares, 1986; Soares, 2000) juntou-se um importante aglomerado industrial na margem oposta (Étienne, Makaroun & Mayet, 1994), localizado na actual Península de Tróia, antiga ilha de Achale (cf. Avieno, 1992), cuja fundação pode ser por agora datada do reinado de Tibério (Pinto, Magalhães & Brum, 2011) e é atribuída à iniciativa de uma rica e influente família da Lusitânia os Cornelii Bocchi , na personagem de Lucius Cornelius Bocchus de Salacia (González Herrero, 2011; Alarcão, 2011). Neste centro fabril, por hipótese satélite de Caetobriga, especializado na produção de salgas e molhos de peixe, encontram-se actualmente inventariadas 25 unidades de produção (Pinto et al., 2016), que, sem soluções de continuidade, abrangem cerca de 800 metros ao longo do rio, bem como, espacialmente dissociados, dois outros núcleos fabris localizados no Recanto do Verde e junto do Cais dos Fuzileiros (Fig. 19). 

2 – É referida como túrdula, mau grado o sufixo briga, o que evidencia a vinculação do estuário do Sado ao mundo fenício tardio organizado por Gadir, até ao período romano (Tavares da Silva et al, 1980-81). Com efeito, importa sublinhar que a ocupação sidérica de Setúbal se integra na matriz mediterrânea e orientalizante e que essa tradição cultural, à semelhança do que ocorreu em outros centros urbanos comerciais atlânticos (p. ex. Olisipo), permaneceu até à plena romanização. 

Fig. 18 – Rua Arronches Junqueiro, nº 75.

Ânfora globular LRA 2/Keay LXV, muito provavelmente vinária, de importação oriental (Egeu ou Mar Negro), dos séculos VI-VII
(Vizcaíno Sánchez, 2009, p. 618).

Fig. 17 – Rua Arronches Junqueiro, nº 75 (Setúbal).

Seg. Tavares da Silva, Soares & Wrench, 2010.

fig17CaetobrigaA

Planta da área escavada;

fig17CaetobrigaC

Reconstituição tridimensional;

fig17CaetobrigaB

Foto da área escavada;

fig17CaetobrigaD

Pormenor do mosaico.

No auge do desenvolvimento de Tróia (segunda metade do século I e século II d. C), as 22 oficinas de salgas de peixe onde até agora se realizaram medições (em 80 tanques), teriam uma capacidade de produção mínima de cerca de 1429m3 suficiente para encher mais de 40.000 ânforas (Pinto, Magalhães & Brum, 2011, fig. 39; Magalhães, 2014; Pinto et al., 2016), valor que não abrange a totalidade da capacidade produtiva instalada, mas que é claramente superior à de outros importantes centros produtores de preparados piscícolas do arco atlântico (Olisipo, Baelo Claudia, Lixus). As salgas da Lusitânia do Alto Império destinavam-se em grande parte a exportação por via marítima e foram embaladas em ânforas da forma Dressel 14. Mesmo com suposta recomposição de carga e eventual mudança de vasilhame (por hipótese substituição de ânforas lusitanas por béticas) na cidade-entreposto de Gades, as ânforas lusitanas Dressel 14 são mais frequentes que as de fabrico bético nos níveis do século II de Ostia (Mayet, 2001); a sua presença nos naufrágios de San Antonio Abad (Ibiza), de Saint-Gervais (Bocas do Ródano), Cap Bénat I (Var) e Sud-Lavezzi III (Córsega), entre outros, permite admitir a existência de duas rotas marítimas principais do Sudoeste Peninsular para Ostia: via Tarraconensis e sul da Narbonensis; e através das ilhas baleares e estreito de Bonifácio (Étienne & Mayet, 1993-94; Arnaud, 2005). A esmagadora predominância de ânforas lusitanas de preparados piscícolas na totalidade do material anfórico até agora inventariado em Tróia (Pinto et al., 2016) é bem elucidativa acerca do carácter económico monofuncional deste estabelecimento e da sua vocação para a produção em larga escala (Fig. 20). Decididamente, trata-se de um grande centro produtor e de um relativamente pequeno “mercado” consumidor, se excluirmos as matérias-primas e bens manufacturados (factores de produção) destinados à fileira produtiva de salgas. A imagem de uma população com fraco poder de compra compagina-se bem com o “baixo” estatuto social registado em algumas inscrições funerárias de Tróia (Encarnação, 1984).

Na margem norte do Sado, o núcleo fabril de salgas de peixe e olarias de ânforas atingem, tal como em Tróia, o apogeu durante o Alto Império (Tavares da Silva, 1996; Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1980-1981, 2014; Tavares da Silva & Soares, 1986; Tavares da Silva, Soares & Coelho-Soares, 1986; Tavares da Silva, Soares & Wrench, 2010, 2015; Tavares da Silva et al., 2010, 2014; Soares, 2000). Além dos núcleos principais da ilha de Achale e de Setúbal, não podemos esquecer que no litoral da Arrábida, até à baía de Sesimbra, existia um rosário de estabelecimentos de produção de preparados piscícolas, quer especializados, como o Creiro (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 2016), quer integrados em explorações agro-pecuárias   como a Comenda (Tavares da Silva & Cabrita, 1964, 1966; Viegas & Soares, 1980; Viegas, 2016). 

Fig. 19 – Localização das oficinas de preparados piscícolas do centro fabril de Tróia em mapa Google. Adaptado de Pinto et al., 2016. 

Fig. 20 – Tróia. Frequência relativa de ânforas lusitanas no conjunto da totalidade das ânforas registadas na jazida. Seg. Pinto, et al., 2016.

 

A actividade piscatória de Caetobriga foi, ao longo do Império, dirigida para espécies gregárias, sobretudo sardinha que constituiu a principal matéria-prima para a manufactura de salgas e molhos. Esta afirmação é suportada pela análise de restos de ictiofauna recolhidos em cetariae e ânforas (Desse-Berset & Desse, 2000; Étienne, 1990; Gabriel & Tavares da Silva, 2016); a ânfora Dressel 14 teria sido usada para transportar salsamenta, como foi comprovado nas escavações da Rua Francisco Augusto Flamengo, mas também provavelmente molhos (liquamen ou muria), de acordo com informação recolhida nas escavações da Rua António Joaquim Granjo (Gabriel & Tavares da Silva, 2016). A informação fornecida por tituli picti em ânforas Dressel 14 (Djaoui, 2016) confirma o transporte de molhos e salsamenta. O principal mercado consumidor dos preparados de peixe lusitanos terá sido Itália e particularmente Roma (Étienne, Makaroun & Mayet, 1994, p. 164- 165). Esse comércio parece ter atingido o seu máximo desenvolvimento na primeira metade do século II (Rizzo, 2016). O certamente extenso salgado que terá servido o complexo de produção de preparados piscícolas do Sado foi presumivelmente sobreposto pelas salinas medievais e posteriores. Do salgado da Herdade da Gâmbia proveio uma ânfora Dressel 14 completa, que deverá relacionar-se com a actividade salineira na Antiguidade. 

Caetobriga afirma-se, pois, como uma cidade portuária, de grande dinamismo produtivo, cujos núcleos seriam ligados sobretudo por via aquática, não se lhe aplicando a noção de cidade “parasitária” e monumental. Só muito recentemente foi possível identificar, na área residencial da colina de Santa Maria, vestígios de edifício monumental, talvez de carácter público (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 2014; Tavares da Silva et al., 2010, 2014) e de domus com pavimentos musivos e decoração parietal de pintura a fresco (Tavares da Silva, Soares & Wrench, 2010), expressão arqueológica da “aristocracia” mercantil local. No núcleo de Tróia, foi igualmente identificada uma área residencial com edifícios de dois pisos decorados por mosaicos e frescos (Rua da Princesa); objecto de escavações antigas, deles muito pouco se conserva, quer no que respeita aos vestígios arquitectónicos existentes no local, quer no que concerne à cultura material móvel. A bibliografia de António Inácio Marques da Costa alusiva às edificações de Tróia (Costa, 1898 e 1930-1931) permite-nos avaliar da qualidade desse sector residencial. 

Fig. 22 – Tróia. Lucerna paleocristã tardia, com cruz no disco e decoração relevada na orla, atribuível ao tipo Atlante X, grupo D4, datado do século VII d.C. (Bonifay, 2004, p. 361; Soares, 1980, Fig. 20).

Foto de Rosa Nunes.

Fig. 21 – Tróia. A – Fresco da basílica paleocristã. O monograma de Cristo foi entretanto destruído.

B – Localização do baptistério (1).

Desenhos de A. I. Marques da Costa, 1930-1931, Figs. 22 e 27. 

 

A partir do segundo quartel do século III, após momento de forte recessão, na passagem do século II para o III, que alguns autores atribuem a sismo de grande magnitude no Sudoeste Ibérico (Mayet & Tavares da Silva, 2010), aquele sector de actividade fabril mostra ainda capacidade para proceder a profunda reorganização através de segmentação ou parcelamento dos estabelecimentos oficinais e da diversificação de salgas e molhos, entre os quais se destacaria o garum (Étienne & Mayet, 2000), muito associado ao tipo anfórico Almagro 51c, o mais produzido nas olarias do estuário do Sado durante o Baixo-Império (Mayet & Tavares da Silva, 2016). 

Ânforas lusitanas do Baixo Império (Almagro 50 e 51c) encontraram-se em naufrágios da rota atlântico-mediterrânea: Gades-Roma-Sicília. E tal como Francoise Mayet afirma ao referir-se ao naufrágio de Cabrera III (Maiorca), muito provavelmente com carga composta em Gades, as ânforas embalariam o garum lusitano, sob a designação de garum hispanum (Mayet, 2001). As ânforas lusitanas do final do IV à primeira metade do século V seguem rotas mais meridionais e associam-se a produtos africanos. A sua presença nas cidades portuárias fica muito aquém do ocorrido nos séculos I e II d. C. Durante o Alto Império, as ânforas lusitanas de salgas de peixe integraram cargas com azeite da Bética e circularam sobretudo segundo a rota Tarraconense/Gália narbonense, mas também através do estreito de Bonifacio. 

Caetobriga entra em declínio durante o Baixo Império, com o abandono e/ou reconversão de estabelecimentos de produção de salgas, mantendo no entanto a produção de preparados piscícolas em pequena escala até ao século V, como foi também verificado na produção anfórica (Mayet & Tavares da Silva, 2016, Fig. 14). Na Setúbal romana – fábrica da Travessa de Frei Gaspar (Tavares da Silva, Soares & Coelho-Soares, 1986) – e no estabelecimento do Creiro, Arrábida (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 1987, 2016), observou-se uma reactivação parcial das cetariae durante o século V, após fase de abandono. 

Dos finais do século IV ao século VI d. C., Tróia sofre claramente uma reorientação económica, com destaque para as funções funerária e religiosa; atenda-se às sepulturas de tipo mensa, à basílica paleocristã com pintura mural a fresco (Fig. 21A) (Maciel, 1996) e ao baptistério (Costa, 1898) (Fig. 21B). Esta é a última fase da vida do núcleo de Tróia, que antecedeu o total abandono do sítio até à Baixa Idade Média, quando uma ermida cristã de invocação mariana 3 retomou, no local, a função religiosa, para a comunidade piscatória de Palhais/ Fontainhas, que aí realiza anualmente a sua festa religiosa. A desurbanização atingirá também a Setúbal romana, a partir talvez de finais do século IV, muito embora de forma menos radical, como veremos adiante. 

3 – Capela construída no topo da duna que cobriu, na “boca da Caldeira”, a basílica paleocristã.

Estrutura funcional da Setúbal romana

O núcleo principal da povoação (ver Fig. 13 do Cap. 2, Enquadramento pealeogeográfico) localizar-se-ia na colina de Santa Maria (com cerca de 5 ha.): o centro urbano e principais edifícios públicos, na área do terreiro e igreja de Santa Maria (Soares, 2000); o reservatório de água para abastecimento público, no topo da mesma colina (Tavares da Silva et al., 2010); e as domus da “aristocracia” local na suave vertente que descia em direcção à praia (Tavares da Silva, Soares & Wrench, 2010). No exterior do núcleo urbano, a nascente, localizavam-se as necrópoles (Soares, 2000), cujo conhecimento se baseia apenas na necrópole da Ladeira de S. Sebastião, observada, em 1906, por A. I. Marques da Costa, quando da abertura do túnel para a linha férrea (Tavares da Silva, 1966). Recentemente, deparámo-nos com o achado de um fragmento de ânfora romana no subsolo do cemitério de N. S.ª da Piedade, o que pode ser um indicador do prolongamento da área da necrópole romana para nascente, sob o casario do Bairro de S. Domingos e mesmo sob o actual cemitério. A hipótese da Setúbal romana ter “exportado” para Tróia, pelo menos parcialmente, a função funerária, parece-nos muito plausível. 

A restinga arenosa que da base da colina de Santa Maria se dirigia para o que é hoje a Praça de Bocage (Soares, 2000), com cerca de 2,5ha (Largo da Misericódia, Ruas dos Caldeireiros, Paula Borba e Januário da Silva, Largo da Ribeira Velha e Rua do Jornal “O Setubalense”), foi edificada sobretudo com oficinas de produção de salgas e molhos de peixe e olaria de ânforas (Tavares da Silva, 1996), principalmente a partir de meados do século I.

A partir do núcleo de Troino tinha-se acesso às pedreiras do Viso (Soares, 1980) e à via terrestre de ligação a Olisipo (Tavares da Silva & Soares, 1986). 

Para nascente de Caetobriga, ao longo da margem direita do Sado, e na foz da Ribeira da Marateca localizavam-se as olarias de produção de ânforas necessárias ao envasamento dos preparados piscícolas: Quinta da Alegria, Zambujalinho, Pinheiro, Abul (Mayet, Schmitt & Tavares da Silva, 1996; Mayet & Tavares da Silva, 1998 e 2002). Estes centros oleiros aliaram, numa lógica de grande racionalidade económica, a máxima acessibilidade aos barreiros e à floresta, com a manutenção do acesso directo a transporte fluvial. Pela mesma via se chegaria à provavelmente mais extensa área de salinas da região (sapais de Praias do Sado e Gâmbia), onde ocasionalmente têm sido recolhidos materiais anfóricos (ânfora Dressel 14); um outro salgado localizar-se-ia na periferia imediata da cidade, no sapal do esteiro do Livramento, onde se ergue actualmente o convento de Jesus, cuja construção, no século XV, foi responsável pela secagem do sapal e desactivação da prática da salicultura nessa área (Tavares da Silva, 1989). 

A economia de Caetobriga, excessivamente especializada na fileira de salgas e molhos de peixe, encontrava-se muito dependente de mercados consumidores exteriores, mediados muito provavelmente pela cidade-entreposto de Gades. Seria, pois, muito vulnerável às conjunturas económicas, sociais e políticas do Império em geral e das cidades com as quais mantinha contactos comerciais, em particular. A uma crise ocorrida nos finais do século II/inícios do século III, cujas causas não estão apuradas, a economia local reagiu a partir de meados do século III, como salientámos anteriormente, pela via da segmentação e diversificação das produções piscícolas. A partir dos séculos V/ VI, o colapso deste sistema económico-social foi tão intenso que Tróia não voltaria a reurbanizar-se, e Setúbal só voltaria a fazê-lo de forma plena a partir do século XIV (Soares, 2000). No entanto, entre as ruínas da Setúbal tardo-romana, encontramos alguns indícios de resistência a um total despovoamento, como a despojada sepultura colectiva do nº 19 da Rua António Joaquim Granjo, do período visigótico, em que a assinatura isotópica do δ13C e δ15N das suas ossadas põe em destaque a importância dos recursos marinhos na alimentação da pequena comunidade, certamente piscatória, que terá habitado a baía de Setúbal durante o século VII d. C (ver estudo no presente volume). 

Fig. 24 – Rua Francisco Augusto Flamengo, nºs 10-12 (Setúbal). Planta e enterramentos da necrópole islâmica. Seg. Tavares da Silva et al., 2014.

Fig. 24 – Rua Francisco Augusto Flamengo, nºs 10-12 (Setúbal).

Planta e enterramentos da necrópole islâmica. Seg. Tavares da Silva et al., 2014.

Fig. 25 – Rua Francisco Augusto Flamengo, nºs 10-12 (Setúbal).

Necrópole islâmica. Datação radiocarbónica do inumado na Sepultura 1.

Seg. Tavares da Silva et al., 2010.

Período Medieval Islâmico

O período medieval islâmico encontra-se mal representado (Fig. 23), mau grado a atenção dispensada aos seus mínimos vestígios no quadro do projecto sobre as preexistências de Setúbal. Merecem destaque os seguintes testemunhos: 

– Necrópole da Rua Francisco Augusto Flamengo (Tavares da Silva et al., 2010, 2014) (Figs. 24 e 25), de que foram escavadas 22 sepulturas em fossa, com os corpos depositados em decúbito lateral direito, e face virada para nascente, sem oferendas funerárias associadas. O esqueleto 1 (Sond. III, Q. L19, C. 6B) forneceu uma datação dos séculos X-XII (Fig. 25) (Beta-256936: 1000±40BP= 980-1150 cal AD, a 2 sigma). Os valores obtidos para δ13C e δ15N, respectivamente -17,4 (‰) e +11.6 (‰) indicam uma alimentação com elevada componente de proteínas de origem marinha (Schoeninger & DeNiro, 1984); 

– Ocupação de carácter habitacional da RAJG.19 (ver estudo no presente volume). 

– Cabanas das Ruas de Bocage/Augusto Cardoso, ed. Vinícola/Benetton (Soares, 2002), instaladas sobre uma praia de areias fluvio-marinhas (Fig. 26), do período almoada (século XII); 

Figs. 26 – Ruas de Bocage/Augusto Cardoso (edifício da Vinícola/Benetton). Seg. Soares, 2002.
A- Perfil estratigráfico da Sondagem IV realizada na metade sul do lote, virada à R. Augusto Cardoso, antiga R. dos Sapateiros. A C.10 corresponde à ocupação medieval islâmica e nela se registaram fossas de detritos domésticos escavadas nas areias de praia da restinga (C. 11) que atravessa o lote na direcção E-O. As fossas encontravam-se revestidas internamente por argila, o que sugere uma localização interior, provavelmente em cabanas construídas em materiais perecíveis.
B- A cultura material associada indica uma cronologia almoada (século XII). Tenha-se presente que a restinga confinava, na metade norte do lote, com área pantanosa para onde foram sendo atirados lixos de actividades doméstica e agrícola pelo menos até ao século XIV. Uma amostra de vides recolhida nessa área (Beta- 164907) forneceu a data radiocarbónica de 600 ±50 BP, a qual calibrada a 2 sigma corresponde ao intervalo cronológico de 1290-1420 cal AD. A intersecção da data radiocarbónica com a curva de calibração ocorre em três momentos, todos do século XIV: 1320, 1340, 1390 cal AD. Seg. Soares, 2002. 

Quadro 1

Datações radiocarbónicas de estacarias de cais palafiticos, dos períodos medieval islâmico e medieval cristão, anteriores à construção da muralha afonsina.

Séculos XI-XIII. 

Estacarias (Fig. 27) de cais palafíticos anteriores à cerca muralhada afonsina e perpendiculares à linha de costa (edifícios Montepio e BCP na Av. Luisa Todi), datadas radiocarbonicamente dos séculos XI-XIII (Quadro 1), aparentemente sem descontinuidades entre o medieval islâmico e o medieval cristão. Também na Rua Luís de Camões, virada para o esteiro do Livramento, ao abrigo da restinga, foram identificadas estacas do mesmo tipo por enquanto sem datações. Pomares e vinhas bordejavam a área pantanosa onde hoje se localizam a Travessa da Portuguesa, o Largo do Sapalinho, a Rua de Bocage e deixaram testemunhos directos da sua presença (Soares, 2000), através de abundantes macro-restos vegetais; algumas amostras de vides têm vindo a ser datadas; foram recolhidas nas camadas de lodos da Travessa da Portuguesa (ICEN-698, com o intervalo de 1015-1213 cal AD, a 2 sigma), do Largo do Sapalinho (ICEN-699, com o intervalo de 1034- 1253 cal AD, a 2 sigma) e do edifício da Vinícola/Benetton, na Rua de Bocage (Beta-164907: 600±50 BP, com o intervalo de 1290-1420 cal AD, a 2 sigma) (Fig. 28). À semelhança do que foi observado relativamente à cronologia das estacarias dos cais palafíticos, também as vides fornecem um intervalo cronológico que nos permite supor a inexistência de descontinuidades no que ao cultivo da vinha respeita entre o medieval islâmico e o cristão. Por outro lado, a datação obtida para   o sítio arqueológico da Rua de Bocage coloca em destaque a existência de vinha dentro da cerca muralhada afonsina e a tardia conquista de solo urbano à área húmida intra-muros. As primeiras construções em alvenaria registadas sobre o antigo sapal da metade norte do lote do edifício da Vinícola/Benetton foram datadas do século XV (Soares, 2002, p. 251). 

A Setúbal da época islâmica terá, provavelmente, correspondido a uma aldeia de cabanas construídas em materiais perecíveis, cuja economia assentou na pesca, associada a uma agricultura hortofrutícola. As boas condições de porto natural oferecidas pela baía de Setúbal obstaram à autarcia do povoado, mesmo durante a sua fase de desurbanização e ciclo de vida mais depressivo. 

Fig. 27 – Av. Luisa Todi (edifício BCP)

Estacaria de cais palafítico, perpendicular à linha de costa, do período medieval (Soares, 1997)

Fig. 28 – Rua de Bocage.

Edifício da Vinícola/Benetton. Calibração da amostra Beta-164907, constituída por vides recolhidas na C. 10 da Sondagem II. Lab. Beta Analytic Inc.

Antecedentes proto-históricos Travessa dos Apóstolos

Em 1984, a escavação de emergência na Travessa dos Apóstolos, na colina de Santa Maria, em lote urbano a reedificar, desenvolvida em uma extensão de cerca de 100m2, revelou a mais potente estratigrafia e a mais ampla diacronia da ocupação humana do subsolo do centro histórico de Setúbal (Soares & Tavares da Silva, 1986; Soares, 2000). Pela primeira vez, foram registadas camadas arqueológicas anteriores à época romana, atribuíveis ao Bronze final, século VIII ( C. 14) e à I Idade do Ferro, séculos VII-V a. C. (Cs. 12 e 13). Os resultados desta intervenção permitiram recuar as origens de Setúbal para momento tardio do Bronze final , ou seja, para a fase de interacção das comunidades indígenas da foz do Sado com os mercadores fenícios do Ocidente, no quadro da construção do império comercial atlântico da metrópole fenícia de Gadir. A colonização fenícia do estuário do Sado terá estabelecido forte vínculo comercial com a comunidade do Bronze final da foz do Sado (povoado da colina de Santa Maria), antes de fundar a sua própria feitoria em Abul (Mayet & Tavares da Silva, 2000b), a meia distância entre a desembocadura do rio e o fundo do estuário, onde se localizava o povoado da colina do castelo de Alcácer do Sal (Tavares da Silva et al.,1980-81). Em ambos os povoados, de fundação indígena, o processo de miscigenação cultural com os colonos fenícios do círculo do Estreito foi tão intenso e persistente que a matriz cultural orientalizante haveria de prosseguir até à romanização 4. 

Após a descoberta destes primeiros vestígios da Setúbal proto-histórica, outros achados datados da Idade do Ferro têm vindo a ser identificados nas vertentes meridional e ocidental da colina de Santa Maria, nomeadamente na Rua Francisco Augusto Flamengo, nºs 10-12, Rua Arronches Junqueiro, nos. 32-34, Travessa de João Galo, nºs 4-4B, no nº. 19 da Rua António Joaquim Granjo (RAJG.19). De um modo geral, os materiais recuperados vão do século VII ao século V a. C., havendo entre este período e a ocupação romana imperial uma descontinuidade que nos tem feito pensar em provável deslocalização do povoado sidérico durante a II Idade do Ferro. 

Com uma topografia pouco interessante para um castro da II Idade do Ferro, o centro histórico de Setúbal, se excluirmos a colina de Santa Maria, apenas ofereceria razoáveis condições para aquele assentamento no esporão sobranceiro à margem direita do esteiro do Livramento (colina de Nossa Senhora da Saúde), onde não têm sido realizadas operações de renovação urbana motivadoras de quaisquer intervenções arqueológicas. Porém, mais recentemente, na Rua Francisco Augusto Flamengo, nºs 10-12 e na Travessa de João Galo, nºs 4-4B, foram encontrados materiais atribuíveis aos séculos IV-I a. C., em ambos os casos descontextualizados, no primeiro em resultado de intensos processos de erosão e abarrancamento de vertentes (coluviões), e no segundo, misturados com areias da praia que constituíram a base da sequência estratigráfica. De destacar a presença de cerâmica de mesa afim da de tipo Kuass (Tavares da Silva et al., 2014, Fig. 6, nº13) e de ânforas de tipo Maña-Pascual A4 (grupos 11 e 12 de J. Ramon) 5, e ainda da ânfora atribuível com algumas reservas à forma Dressel 1 (Tavares da Silva & Coelho-Soares, 2014, Fig. 4), que assinala o período romano-republicano, tão bem representado, ao contrário do observado em Setúbal, no vizinho castro de Chibanes (Soares & Tavares da Silva, 2014). 

4 – A resiliência da metrópole de Gadir/Gades foi notável. A partir de meados do século V e durante o século IV a. C., encerrado o ciclo metalúrgico, reorganiza o seu papel como placa giratória do comércio mediterrâneo/atlântico, através do incremento da produção de preparados piscícolas. Tira partido da abundância de peixe nas águas atlânticas, transformando-se no principal abastecedor de salgas de peixe à escala do Mediterrâneo. Nos alvores do século III a. C., liberta-se do “asfixiante” imperialismo cartaginês, colocando-se voluntariamente na dependência de Roma, o que lhe permitiu continuar a exercer a sua influência regional, controlando o comércio atlântico-mediterrâneo. 

5 – A cultura material da Idade do Ferro turdetana (sécs. V/IV-III/II a.C.) inclui entre outras importações, cerâmica de mesa tipo Kuass e ânforas Mañá-Pacual A4 que transportavam salgas de peixe produzidas na baía de Cádiz. Nas condições de jazida aberta de uma praia (Travessa de João Galo) apenas podemos considerar alguns elementos tipologicamente significativos que apontam para uma matriz cultural mediterrânea adentro da II Idade do Ferro.

Introdução. Caetobriga: uma cidade fabril e polinucleada na foz do Sado​

Joaquina Soares - Carlos Tavares da Silva
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A influência Romana no Sado

As Oficinas de Preparados de Peixe da Lusitânia

As Oficinas de Preparados de Peixe da Lusitânia: arquiteturas e dinâmicas econômicas da sua produção (séculos I – VI d.C.)

Ronaldo Guilherme Gurgel Pereira

 Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Arqueologia, realizada sob a orientação científica do Prof. Dr. José Carlos Quaresma e co-orientação da Profª Drª Maria Helena T. Lopes 

Este estudo aborda a economia dos preparados de peixes lusitanos, enquadrando a produção provincial à realidade económica imperial romana entre os seculos I e VI d.C. A cronologia dessa atividade enfrenta momentos alternados de arrefecimento e retoma. Todavia, a salga e transformação do peixe foi uma das principais atividades económicas da Lusitânia, que a partir do século III avança para a categoria de um dos principais produtores do império. Apesar da alta demanda e da respetiva produtividade, muitos dos centros produtores começam a apresentar uma reconfiguração dos seus tanques e cetárias. Essa reconfiguração arquitetónica estará relacionada tanto com alterações do perfil da produção como com transformações no modo de vida, uma vez que observa-se também uma redefinição de espaços urbanos e rurais por toda a Hispânia ao longo do baixo-Império/ Antiguidade Tardia. 

This work approaches the economy of fish sauces in the Roman province of Lusitania during the 1st and 6th centuries CE. A chronology for this economic activity is characterized by a brief phase of cool down, followed by a retake into full activity. From the 3rd century onwards, Lusitania became the main producer of fish sauces. However, its workshops underwent a systematic process of partial or full abandonment, and the surviving cetariae suffered a radical reduction in dimensions and capacity. Such transformations are embedded by a context in which the main typology of the product in the market was changing and also a complex process of urban reconfiguration in all provinces in Hispania. Thus, a transformation in ways of life is also part of this whole picture of physical reconfiguration. 

INTRODUÇÃO: A PROVÍNCIA ROMANA DA LUSITANIA

A ocupação romana da Península Ibérica teve início em cerca de 197 a.C., como consequência de sua vitória sobre os cartagineses na Segunda Guerra Púnica (218 – 201 a.C.). Assim, estabeleceu-se uma administração do território então denominado Hispania por dois oficiais pretores: um encarregado da porção oriental do novo domínio provincial (Hispania Citerior) e o outro com jurisdição sobre a sua porção ocidental (Hispania Ulterior). Neste primeiro momento de ocupação romana, de assumido caracter militar, o principal objetivo da sua agenda era estabelecer o controlo sobre e explorar o novo território. 

Segundo os relatos de Estrabão e Apiano1 a expansão da autoridade romana sobre a parte atlântica da península coube ao novo governante da Hispania Ulterior, Decimus Iunius Brutus Callaicus, em 138 a.C. Segundo Estrabão, o recém-eleito cônsul fortificou Olisipo (Lisboa) e utilizou-a como base logística para lançar a sua campanha. 

1 Cf. Respectivamente em: Geografia, 3.3.1ff e Iberica 73-75.  

Durante o restante dos séculos II – I a.C., a administração romana para o ocidente peninsular centralizou a sua burocracia em torno de três cidades: Pax Iulia (Beja), uma colónia de cidadãos romanos; Liberalitas Iulia Ebora (Évora), uma cidade de direito latino; e Felicitas Iulia Olisipo (Lisboa), com status de municipium civium romanorum. Esse modelo administrativo só foi substituído após a ascensão de Otaviano (Gaius Iulius Caesar Octavianus), em 27 a.C., adotando para si o título de Augustus. Uma vez garantido a sua posição como governante perpétuo, Augusto recusou títulos monárquicos e reinou sob o título de Princeps Civitatis (O Primeiro dos Cidadãos). Com o seu reinado, teve início o “Principado”, inaugurando o período dito imperial da civilização romana. 

Augusto ordenou diversas reformas administrativas, o que eventualmente afetou a organização da burocracia na Hispania. Assim, em 15 a.C., a Hispania Ulterior foi formalmente dividida em duas partes: Baetica (parte oriental) e Lusitania (a ocidente). 

A capital lusitana foi estabelecida em Augusta Emerita (Mérida), uma colónia de cidadãos romanos, o território foi subdividido em três unidades administrativas denominadas “conventus iuridicii”. Assim desenvolvem-se três novas capitais regionais: Augusta Emerita, Pax Iulia e Scallabis Praesidium Iulius (Santarém), as três cidades com status de colónia de cidadãos romanos, que por sua vez impulsionarão o desenvolvimento de núcleos urbanos de menor escala que ajudarão a estruturar os seus territórios. De facto, Frías (2016) acrescenta que esse processo de urbanização instigou o desenvolvimento de centros populacionais indígenas situadas no vale do Tejo e ao sul deste, chegando algumas a serem elevadas à condição de municípios e colónias. 

A produção de preparados de peixe na Lusitânia conheceu duas fases de produção. A “primeira fase” (ca. 50 – 150 d.C.) é um período menos conhecido devido à escassez de estratigrafias para o período pré-flávio da província, graças ao palimpsesto estratigráfico produzido pelas ocupações da segunda fase dos centros. 

Todavia, sabe-se que uma retração económica ocorrera no Mediterrâneo Ocidental entre os séculos II-III, pondo fim à chamada “primeira fase” de produção, no período Alto Imperial. A essa possível crise de crescimento, seguiu-se um hiato em que diversas cetárias foram abandonadas e/ou reformuladas. 

Na Lusitânia o processo de crescimento urbano sofre uma estagnação categórica em ca. 125 d.C., seguindo-se o abandono de algumas estruturas urbanas, como o anfiteatro de Conimbriga e a amortização de caleiras em Baelo Claudia e Baetulo. 

Ao longo do século III, teve fim a fase de letargia da produção dos preparados de peixe. Entre 225 e 250 d.C., a produção experimenta um novo impulso, que durará até o princípio do século V d.C. Uma continuação tardia, pós-romana, poderia ainda ser classificada como uma possível “terceira fase”, ainda pouco conhecida, que iria ainda compreender os séculos V-VI. 

A “segunda fase” de produção dos preparados de peixe coincide, em parte, com um processo de redefinição urbana sob a Tetrarquia, que ultrapassava a província da Lusitânia, no século IV d.C. Esse processo incluiu reformulações do tecido urbano e afetou também as grandes villae da Hispania, concentradas sobretudo no sul da Lusitânia. 

Durante a segunda fase de produção verifica-se que a produção de ânforas piscícolas sofreu um aumento considerável, especialmente no Algarve. De facto, a produção lusitana dos preparados de peixe recebeu maior destaque nessa época, nos centros de consumo. No seu auge, a produção lusitana de preparados de peixe foi uma das mais importantes do império, superando a vizinha Bética, até então a principal produtora peninsular. 

Quatro regiões da Lusitânia desenvolveram centros produtores: os Vales do Tejo e do Sado (que compõem uma mesma realidade arqueométrica), o Litoral Alentejano e o Litoral Algarvio. Muitas vezes a nova realidade da segunda fase provocou o parcelamento das cetárias e compartimentação dos tanques. Uma nova gama de contentores piscícolas (Alm 50c e 51 a-b) possui bocal mais pequeno, o que condiz com os dados arqueozoológicos sugerindo a preferência para o emprego de espécies mais pequenas de peixes, como a sardinha. Entendemos que esse fenómeno sugere uma transformação estrutural no próprio modelo de exploração económica dessa atividade. 

Este projeto teve por objetivo uma análise evolutiva das oficinas lusitanas de preparados de peixe, tendo como base a segunda fase da sua produção. A partir dos dados disponíveis acerca dos edifícios e das suas cetárias, diversas abordagens e metodologias foram comentadas. Assim, foram consultados estudos diacrónicos das plantas das oficinas conhecidas, das tipologias das ânforas piscícolas envolvidas na sua logística e dos conteúdos coletados em cetárias e ânforas (arqueozoologia). 

Uma análise dos dados referentes à produção anfórica dos estuários do Tejo-Sado e do litoral algarvio foi explorada apenas para se estabelecer coerências e contradições à luz do desenvolvimento cronológico da economia dos preparados de peixe. Do mesmo modo, os dados arqueozoológicos e os tituli picti estudados, a evolução das dimensões e tipologias dos seus contentores e a evolução arquitetónica dos centros produtores de preparados de peixe contribuíram na qualidade de fontes primárias auxiliares. 

Esse estudo foi organizado em três secções temáticas. No primeiro capítulo foi promovido uma contextualização histórica e arqueológica da temática. Esse capítulo inclui uma caracterização das fontes primárias textuais disponíveis, e a apresentação do estado da arte sobre os estudos sobre a produção dos preparados de peixe na Península Ibérica e, mais especificamente, na Lusitânia. 

O segundo capítulo é introduzido por uma apresentação sobre o estabelecimento da produção dos preparados de peixe na Lusitânia. Seguiu-se descrição da geografia das quatro “grandes áreas” produtoras: Estuário do Tejo, Estuário do Sado, Costa Alentejana e Litoral Algarvio. Cada “grande-área” é caracterizada e segue-se a descrição de todas as respetivas oficinas, tanques e cetárias conhecidas, mapeadas e comentadas. 

Finalmente, o terceiro capítulo promove um breve ensaio sobre a economia antiga e os ritmos da produção dos preparados de peixe lusitanos. Os dados anfóricos sobre a exportação de ânforas de preparados de peixe béticos e lusitanos contribuem para um breve esboço sobre a conectividade regional com o comércio de longa-distância. Esse capítulo também aborda as transformações económicas, sociais e arquitetónicas ocorridas na província ao longo das fases de produção dos preparados de peixe. 

CAPÍTULO I: A PRODUÇÃO DOS PREPARADOS DE PEIXE NA LUSITÂNIA

A presença romana na Península Ibérica foi uma consequência direta da rivalidade e dos conflitos com Cartago. Sabe-se que o sul do território atualmente português esteve contido na esfera de influência política e económica púnica. Originalmente, os antigos autores descrevem aquele território como abundante em recursos minerais, especialmente o ouro de aluvião.2

2 Cf. Cátulo 29: 18-20 menciona o “aurifer Tagus”. Menções similares ocorrem nas obras de Ovídio, Estrabão, Plínio, Séneca, Marcial, Juvenal, Lucânio e Pompónio Mela  

A arqueologia comprovou também a existência de minas romanas de prata e cobre, especialmente no sul da Lusitânia (Martín, 1996: 299-304). 

Osland (2006, 11) propõe que os recursos minerais constituíram num forte motivador para a reorganização das províncias da Hispania por Augusto. A partir da sua reorganização administrativa, a maior parte das áreas mineiras ficaram sob a jurisdição das províncias imperiais da Lusitania e da Tarraconensis (Martín, 1996: 39). 

Ao longo do século I a.C., uma série de colónias foi estabelecida na Lusitânia. Esses empreendimentos tinham como principal objetivo o assentamento de veteranos militares e da fundação de centros populacionais, seguindo um programa de fixação de núcleos de influência política económica e social. A priori, todas as colónias foram estabelecidas em áreas de grande potencial agrícola, em detrimento das áreas de maior potencial mineiro (Osland, 2006: 11). 

Todavia, para além dos recursos minerais e agrícolas, a Lusitânia sediou uma notória indústria de produtos de preparados à base de peixe, vulgarmente denominados “garum (Fig. 1) 3.

3 Verificar também a Tabela 1.  

Sob uma ótica romana dos séculos II a.C. – I d.C., as principais características geográficas da província remetem aos seus rios navegáveis, à região costeira e às planícies férteis da porção meridional da província 4. As principais cidades lusitanas desenvolveram-se ao longo da costa atlântica e próximo dos seus rios mais importantes. Estes centros tornaram-se num polo ideal para o desenvolvimento da indústria de produção de azeite 5 e dos preparados à base de peixe. 

4 Plínio Historia Naturalis 4.115; Estrabão Geografia 3.2.3 – 3.2.4.  

5 De acordo com Brun (1997), pode-se verificar a dispersão de lagares de vinho e azeite na Lusitânia, mas certamente será o caso de uma dimensão local/ regional, não de exportação. Por outro lado, o vinho do Tejo e Sado são comprovadamente exportados (ânforas Lusitana 3 e 9).  

As condições naturais da Lusitânia favoreceram o florescimento de uma indústria especializada em preparados de peixe. Um extenso litoral atlântico, um clima hospitaleiro e a abundância de recursos marinhos e sal foram responsáveis pelo estabelecimento de diversos centros de produção ao longo do litoral (Edmonson, 1990; Étienne e Mayet, 2002; Fabião 2009b). 

De facto, a produção anfórica contendo preparados à base de peixe provenientes da província começa a ser diagnosticada crescentemente no império romano, a partir de finais do século III d.C. Esse crescimento pode indicar uma “atlantização política” no século III d.C. (Quaresma 2012: 496). Nesse contexto, a indústria lusitana de preparados de peixe recebe destaque em função das alterações no quadro da nova dieta alimentar imperial, que dará maior ênfase aos preparados de peixe do que ao azeite, alavancando a produção do produto 6 ao ponto de superar a produção da vizinha Bética. 

6 Essa nova dieta substitui aquela do Baixo-Império e é comentada por Decimus Magnus Ausonius (apud Étienne; Mayet, 1993-1994: 216 e nota 34).  

A assimilação desse hábito alimentar pelos romanos demonstra alguma influência do mundo púnico e grego, bem como o desenvolvimento de uma crescente demanda da elite urbana romana por produtos exóticos e refinados. Quanto ao restante do império, a assimilação desse produto certamente esteve integrada ao próprio processo de aculturação e aproximação às elites colonizadoras (Bugalhão, 2001: 45). Nesse contexto, sabe-se que a dieta alimentar romana acabou por adotar em larga escala os produtos preparados à base de peixe. 

As constantes referências de Apício 7 ao ingrediente nas receitas da culinária romana aponta para a existência diferenciada de produtos de alta qualidade, consumidos pelas elites, e uma variante de baixa qualidade, acessível ao público sem condições de sustentar uma alimentação luxuosa (Edmonson, 1987: 102). Nesse caso, os preparados supririam a necessidade de sal e proteína animal na alimentação das classes mais baixas, quase sempre limitados a uma dieta vegetariana. 

7 Marcus Gaius Apicius, autor da principal fonte textual sobre a gastronomia romana: De Re Coquinaria, no século I d.C.  

Sabe-se que no território sob a influência de Cádis 8 já havia uma produção de preparados de peixe em funcionamento anterior à conquista romana. Entende-se que o consumo desse produto fosse originalmente restrito a uma elite urbana (Blazquez Martinez, 1995: 233). Especula-se que essa produção pré-romana, apesar de, talvez, se ter mantido sempre como uma pequena produção artesanal e de caracter familiar (Gutierrez Lopez, 2004: 254-255), teria encontrado o seu ápice na época púnica (séculos IV – III a.C.). Nesse período produziam-se preparados de peixe na zona da Baía de Cádis (Vargas, 2005: 105) e na Sicília, onde se localizaram ânforas púnicas nas unidades de produção (Lagóstena Barrios, 2001: 204). 

8 A produção de um molho de peixe salgado está referida na obra do comediógrafo grego do século V a.C., Eupolis de Atenas (frag. II, 43).  

No momento, evidências sugerem que ao menos em parte do território que veio a formar a Lusitânia se produzisse e/ou consumisse produtos de preparados de peixe em algum tempo anterior à conquista romana. A produção é sugerida pela existência de alguns centros de produção que funcionavam em porções do litoral meridional do território, durante o período púnico, certamente sob influência gaditana (Edmonson, 1987; Étienne e Mayet, 2002; Faria, 2002: 48-49, 67). 

Quanto aos indícios de consumo, há uma limitada evidência arqueológica. Segundo o registro material encontrado em Lisboa em contexto pré-romano, aquele assentamento importou ânforas piscícolas (T – 11.2.1.2) entre os séculos V e III a.C. (Pimenta, 2006: 224). Embora o estudo seja inconclusivo sobre a importância dos preparados de peixe para a economia daquela comunidade, o autor reconhece que a quantidade de ânforas piscícolas aumenta à proporção que os contingentes militares romanos se instalam na região. Essa produção era toda oriunda da região gaditana, indício das precoces relações comerciais entre aquelas regiões. 

Não há evidências disponíveis para um estudo do tema ambientado na produção desses produtos durante o período republicano. Iola (2011: 17) sugere que a ausência de uma “indústria” de preparados de peixe na época republicana poderia se dever à instabilidade política e económica da Lusitânia na época, uma vez que a Hispania foi completamente submetida apenas no final do século I a.C. Entretanto, Bombico (2017: 72) esclarece que a chamada “política atlântica romana”, iniciada em meados do século I d.C., foi responsável pela potencialização da exploração dos recursos marinhos e minerais, afetando, consequentemente, a administração dos recursos da província. 

A despeito das razões oficiais, verifica-se que a maioria dos centros de produção dos preparados de peixe no ocidente data do período imperial (Bugalhão, 2001: 38), embora se reconheça a pré-existência de centros similares no mundo púnico. Portanto, mesmo que essa produção tenha sido meramente “retomada” durante o principado, os preparados de peixe já estavam a ser explorados em larga-escala no século I d.C. 

I. 1. Das oficinas de preparados de peixe

Na Lusitânia, a data estimada para o princípio da produção é o segundo quartel do século I d.C., localizando-se nos estuários do Tejo e do Sado. Quanto ao Tejo, a olaria encontrada no Largo da Misericórdia funcionou no segundo quartel do século I d.C., e produziu o tipo de ânforas empregadas para os produtos à base de preparados de peixe (Tavares da Silva, 1996: 48). Olisipo, apesar de oscilações em sua população, foi um centro ativo por séculos antes da conquista romana. 

Fabião (2009b) supõe que o Tejo possua duas fases de exploração dos produtos à base dos preparados de peixe, à semelhança do que ocorrera ao Sado. Uma pequena fase inicial teria contado com pequenas unidades produtoras na área urbana de Olisipo, embora não haja comprovação arqueológica satisfatória no momento (Fabião, 2009b: 570). O estabelecimento encontrado sob a Casa do Governador da Torre de Belém (Figs. 5 – 6), na periferia de Olisipo, coloca essa proposta em cheque (Iola, 2011). 

O Sado teria desenvolvido uma indústria em dois momentos distintos, com dimensões e estratégias específicas. Num primeiro momento, existiram pequenas unidades produtoras, como as do sítio do Praça do Bocage (Fig. 8), Travessa de Frei Gaspar (Fig. 8a) e Creiro (Fig. 10 – 10a). 

Inicialmente, essas unidades recorriam a olarias locais para o envase e transporte de sua produção (Tavares da Silva e Coelho-Soares, 1987: 236-237). Um segundo momento testemunhou o surgimento de grandes núcleos produtores, enquanto a produção oleira viu-se empurrada para o interior do estuário (Fig. 7), em sítios como a Herdade do Pinheiro, Abul e Quinta da Alegria (Fabião, 2009: 570). 

Fabião (2009b: 569) entende que o litoral do Algarve desenvolveu o seu conjunto de centros produtores em um período posterior (Fig. 16) 9.

9 Verificar também a Tabela 2.  

Para o autor, o envasamento dessa produção algarvia possivelmente era feito por ânforas oriundas da Bética, que então já possuiria uma estrutura bem consolidada na produção dos preparados de peixe. 

Cronologicamente identificam-se duas fases para a produção dos preparados à base de peixe. Um primeiro momento teria sido consolidado entre os séculos I- II d.C., e chegado ao final na transição entre os séculos II – III d.C. Uma historiografia dita tradicional identifica a chamada crise político-militar do século III como causa para a quebra da indústria, uma vez que as rotas marítimas estavam afetadas, dificultando o escoamento da produção (Bugalhão, 2001: 39). Alinhado à historiografia tradicional, Fabião (2009b: 571) sugere que a queda demográfica provocada pela praga que varreu o império durante o principado de Marco Aurélio poderia estar ligada à redução do volume da produção dos preparados. 

Por outro lado, Quaresma (2012: 257ff) argumenta que a cunhagem de Cláudio ainda é utilizada nas transações comerciais das décadas seguintes. Uma vez que só se identifica um novo crescimento da cunhagem a partir dos tempos de Adriano, há indícios prováveis de uma leve deflação nesse período. O autor favorece uma visão de que a recuperação do processo inflacionário do século I é interrompido até princípio do século II. 

Quanto à curva dos naufrágios no século II, a ausência da estudos sobre naufrágios na costa africana exclui informação estratégica sobre uma área importante do império. Uma vez que ocorre na época um intenso fluxo de mercadorias proveniente da costa africana (predominando a cerâmica de mesa, azeite e preparados de peixe), a ausência de dados sobre os naufrágios da área torna patente a carência de dados arqueológicos suficientes para que se possa realizar uma análise precisa do período (Wilson 2009: 220ff). 

De facto, o ocidente imperial apresenta, no século II, uma série precoce de sintomas que serão característicos da Antiguidade Tardia. À crise da produção dos preparados de peixe lusitanos, soma-se a estagnação do crescimento urbano, uma crise financeira que afeta todo o império, uma praga e a ocorrência de ataques dos Mauri à Hispânia. Quaresma (2012) demonstra que a crise estatal de meados do século II antecede a praga e que a crise do consumo de terra sigillata pode ser verificada ainda no princípio do século. Portanto, a derrapagem económica ocorrida no século II afeta igualmente os empreendedores privados e públicos. 

No século III ocorre a retomada da produção dos preparados de peixe, agora envasada em novas tipologias anfóricas (saem as do tipo Dressel 14 e surgem as do tipo Almagro 50 e 51c) 10.

10 Há aqui uma controvérsia. O processo de substituição das ânforas terá começado a ocorrer a partir do século II d.C., de modo que essa prática pode não estar sequer vinculada à crise do século III d.C. (Ver: Fabião, Guerra, 1993: 1004).  

O segundo ciclo dessa produção estendeu-se possivelmente até a primeira metade do século V d.C. Entretanto, no Algarve, ao menos o centro produtor da Travessa Silva Lopes, em Lagos, prosseguiu em atividade até princípios do século VI d.C. (Ramos, Almeida e Laço, 2006). 

As chamadas “invasões bárbaras” do século V d.C., a rutura de rotas comerciais e o declínio do comércio e as evidências apresentadas pelos dados arqueológicos de abandono estabelecem o colapso da produção lusitana para esse período. 

I. 2. O contributo das fontes textuais

As fontes textuais deixadas pelos autores da antiguidade foram, por muito tempo, o principal recurso para a compreensão da produção romana dos preparados de peixe. De facto, essas fontes disponibilizam uma descrição ampla e detalhada dos múltiplos aspetos da atividade pesqueira romana republicana e imperial, inclusive o processamento e comércio dos preparados de peixe. 

A terminologia latina identifica variedades tipológicas da produção dos preparados à base de peixe, bem como da matéria-prima utilizada na sua confeção. Fontes epigráficas, como os tituli picti, ainda revelam detalhes sobre o local da sua proveniência ou da destinação do produto. A identificação e classificação das tipologias produzidas e as explicações literárias romanas para a terminologia romana formam o primeiro passo para o estudo do tema. Portanto, os estudos das fontes literárias são particularmente interessantes para aqueles que investigam a geografia da produção dos preparados de peixe. 

Os autores antigos deixaram-nos comentários acerca da estrutura, funcionamento e desenvolvimento dessa produção. No caso da Península Ibérica, a obra de Estrabão, “Geografia” (livro III) oferece informações normalmente confirmadas pela arqueologia do início do período romano imperial (Garcia Vargas e Bernal Casasola: 2009, 135). De igual importância se acrescenta a obra de Plínio, “Historia Naturalis”, devido ao seu caráter enciclopédico. 

Os antigos autores diferenciavam os preparados sólidos, ou conservas (salsamenta, tarichos) dos molhos (líquidos) à base de peixe (Curtis, 1991: 6ff). Apenas uma única referência textual antiga sobre a confeção dos preparados sólidos sobreviveu ao tempo, deixada por Columella (De Re Rustica 12, 55,4), no século I d.C. Contrariamente, abundam os relatos descritivos da produção dos molhos líquidos, desde Marcus Manilus, “Astronomica (V, 656-681), também no século I d.C., até a obra “Geoponica” (20, 46, 1-6), bizantina e anónima, do século IX d.C. 

Dentro desta segunda categoria, dos molhos, a terminologia era utilizada de acordo com a qualidade do produto. A documentação romana lista quatro molhos de peixe “distintos”: garum, liquamen, muria e hallex (Dumitrache, 2009: 553). Contudo, essa “distinção” deve ser considerada com cautela, uma vez que, nem sempre essa terminologia é empregue de maneira clara. Por vezes ocorrem generalizações e simplificações quanto à verdadeira natureza do produto referido. 

Há um grupo especial de produtos que se conhece apenas pelas suas referências nas fontes literárias (hydrogarum, oenogarum e oxygarum). Esses produtos nunca foram atestados nos tituli picti ou documentação similar (Garcia Vargas e Bernal Casasola, 2009: 136; Bombico, 2017: 127). 

Por outro lado, quando a designação dos produtos mencionados pelos tituli picti coincidem com aquela mencionada pelas fontes literárias, não há a certeza absoluta de que se trate de uma correspondência perfeita entre os produtos referidos pelas ânforas e pelos autores antigos. Há que se considerar uma possível evolução semântica, pelo que a terminologia técnica para designar os diferentes preparados de peixe poderiam ser usados de maneira mais genérica, seja por vícios linguísticos ou regionais (Garcia Vargas e Bernal Casasola, 2009: 136). 

Não se sabe ao certo a origem etimológica do termo “garum”, a não ser que seria a latinização do termo grego homófono. Plínio cunha o termo na sua Naturalis Historia (31. 93-94) ao mencionar que um produto à base de cavala 11 consistia num garum de alta qualidade, sugerindo o aproveitamento do seu sangue (hematites). O aproveitamento do sangue é ainda comentado por Séneca (“Epistulae Morales ad Lucium” 95.25) 12. 

11 Em Origines (20, 3 ,19), Isidoro de Sevilha, emprega o termo “garum” para identificar um tipo específico de peixe: “(…) quae Graeci garon vocabant”. Essas são precisamente as mesmas palavras lidas na Naturalis Historia de Plínio ao definir o garum como um molho: “liquor piscium salsus (…) quae Graeci garon vacabant” (XXXI. 93).  

12 “Illud sociorum garum, pretiosam malorum piscium saniem (…).”  

A receita de garum mencionada nos Geoponica (20.46.6) considera o haimation como o tipo de garum mais valioso. A seguir, descrito no século III d.C. na obra de Sextus Iulius Africanus (Kestoi 1.19.105) viria uma receita intermediária em qualidade denominada garós sókkios. Esta receita aproveitava as entranhas dos peixes, que consequentemente incluiria o sangue. 

O termo “garum” foi ainda utilizado genericamente para definir o molho (preparado líquido à base de peixe processado) com o emprego de condimentos. O liquamen aparece como um produto distinto do garum, ainda que de natureza similar (Étienne, Mayet, 2002: 50 – 51). Todavia, se garum e liquamen, não forem exatamente o mesmo produto, eles terão tido receitas extremamente similares, preparadas à base de vísceras, ovas e sangue de peixe (ou mesmo de pequenos peixes), macerados com sal e aromatizantes (Bombico, 2017: 127). 

De facto, a partir do século I d.C., o termo liquamen passa a ter um emprego generalizado 13. Por volta do século IV d.C., já não se encontram mais referências ao termo garum, a não ser em ocasiões excecionais 14. 

13 Fabião e Guerra (1993: 999 – 1003) observam que na obra do século I d.C., De Re Coquinaria, de Apício, o termo “liquamen” substituti o termo “garum” na base de 425 referências contra 2.  

14 Martial escreveu, na segunda metade do século III d.C., que liquamen era garum misturado com vinho: “confecto liquaminis quod onegarum vocant” (Curae boun, 62). No século V d.C., Aureliano reproduz a equivalência garum-liquamen: “garum quod appellamus liquamen” (Tardarum passionun, 2.1.40).  

Columela descreve a muria como o produto de uma salmoura obtida a partir da mistura feita num quadratus (ca. 28 l) de água doce com um modius (ca. 8,75 l) de sal (De re rustica, 12, 6). O termo também era utilizado genericamente para molhos de peixe (Étienne, Mayet, 2002: 47)15. O allec (hallex, allec ou allex) certamente tratar-se-ia de algum produto secundário, derivado dos residuais da produção do garum/liquamen (Dumitrache, 2009: 554). Subprodutos mencionados por Apício mencionam os compostos hydrogarum, oenogarum e oxygarum como resultantes da adesão, respetivamente, de água, vinho e vinagre ao liquamen (Bombico, 2017: 127). 

Existe também a informação textual reunida pela própria arqueologia, a partir dos tituli picti 16 referenciando as ânforas de salsamenta. Esses rótulos comerciais possuem uma importância estratégica para o estudo da produção dos preparados de peixe. As etiquetas sugerem uma vasta tipologia de produtos e/ou receitas não mencionadas pela literatura greco-latina disponível. Contudo, deve-se adotar essa fonte com precaução, uma vez que a sua leitura é, por vezes problemática (Garcia Vargas, Bernal Casasola, 2009: 136). 

16 Rótulos comerciais pintados sobre as ânforas de transporte. Esses rótulos normalmente abreviam uma informação geral sobre o volume, a proveniência e qualidade do produto, bem como a identificação do produtor.  

Um caso emblemático do processo de análise e debate de um tituluis pictus ocorre com a identificação de um suposto subproduto denominado laccatum. Tratar-se-ia de um molho de peixe combinado com um tempero-colorante (lac/ lacca/ laccat que indicaria a sua proveniência em Lacca, na Bética (Sarhage, 2002: 72). 

Contudo, Djaoui (2016) demonstrou que tal produto, de facto, não existiu, tendo se tratado de um equívoco de leitura. Na segunda linha do depinto do pescoço de uma ânfora Dressel 14, onde constava LAC[–], a leitura que propôs “LAC(catum)” foi corrigida pelo autor para LAC(certus) CAT(tulus). As Dressel 14 são normalmente destinadas ao transporte de liquamen, e a presença de LAC[–] constar na segunda linha do depinto tornavam inviável que se desenvolvesse o texto como “laccatum”. Djaoui então propõe lacertus como a proposta ideal de identificação do tipo de peixe processado. 

Os tituli picti também identificam a proveniência do produto de maneira mais direta. Por exemplo, anotações como Garum Ostiense, revelavam uma proveniência de Óstia; garum Lunense, itálica; liquamen Antipolitanum, de Antípolis; muria Malacitana, de Malacca; hallex Herculanensis, de Herculano (Dumitrache, 2014: 555). 

Sabe-se que os molhos mais referidos pelos tituli picti eram fabricados a partir da cavala (scombri), atum (thunnus, cordula), ou ainda uma mistura, denominada garum geminus 17 (Dumitrache, 2009: 555). Essas matérias-primas são regularmente referidas nos rótulos pintados nas ânforas. Assim, o chamado garum scombri (CIL IV, 2574-2580; 2583; 2586; 9415) seria fabricado a partir de cavalinha, tal como o liquamen scombri (CIL IV, 2588) e o hallex scombri (CIL XV, 4730-4731). 

17 CIL, IV 5826-5827; 9392-9393; 10272-10273.  

A terminologia das etiquetas também podia incluir epítetos que informavam sobre a qualidade do produto. Os molhos considerados “puros” eram diferenciados daqueles que recebiam condimentos extras na sua receita. Os epítetos incluem flos e flos flos, optimum, praecellens, primum, secundum, excellens, flos excellens, entre outros. Não se compreende ainda claramente qual era o critério de hierarquização desses epítetos, ou sequer possíveis equivalências qualitativas entre eles (Dumitrache, 2009: 556). 

Há ainda um caso emblemático de registo de proveniência que acumula uma garantia de qualidade. Trata-se do chamado garum sociorum, marca de uma societas estabelecida em Carthago Nova. Os autores clássicos são unânimes ao atribuírem um status superior ao “garum sociorum”, de origem hispaniense, em razão da sua qualidade. 

Étienne (1970) defende que haveria ali uma referência a alguma companhia concessionária regional, administrando salinas e cetárias e processando produtos de salga e conserva piscícolas. Em oposição a essa visão, Garcia Vargas e Bernal Casasola (2009) defendem que, na realidade, haveria sim uma variação hispaniense da receita. 

A existência de uma “receita hispaniense” pode induzir à ideia de que haveria na Bética uma produção centralizada e homogénea. Todavia, os tituli picti apontam para uma possível “fragmentação” da produção bética, uma vez que os negotiatores salsarii béticos compram e envasam os seus produtos a partir de origens diversas. Sabe-se que M. Valerius Abinnericus transportou para Pompeia a produção de Clarus de Ossonoba e de vários outros produtores (Étienne, Mayet, 1998: 214; Étienne, Mayet, 2002: 229). 

A epigrafia lusitana, que poderia auxiliar a elucidar a questão, não está disponível em volume suficiente para orientar especulações a esse respeito. Sabe-se que, a título de comparação, na Bética existiam sociedades dedicadas à exploração dos preparados de peixe. Essas sociedades articulavam mercatores e negotiatores salsarii baetici com a Italia e com o limes germanicus e o norte da Gallia (Bombico, 2017: 113). 

I. 3. Conserva e transformação de peixe

A produção de conservas e molhos de preparados de peixe conjugava diferentes atividades e etapas, incluindo a pesca, a exploração do sal e a transformação do pescado. Contudo, não se sabe se essa exploração era feita via iniciativa independente ou articulada em alguma rede. Não se sabe se os centros produtores de preparados de peixe dispunham da frota de barcos de pesca, se produzia as suas próprias ânforas ou se explorava as suas próprias salinas (Bombico, 2017: 113). 

A possível interdependência entre centros produtores de preparados de peixe e olarias produtoras de ânforas é ainda um tema em debate. Os centros oleiros produziam ânforas, mas também fabricavam cerâmica comum e/ou de construção (Fabião, 2009b: 582). Uma mesma unidade produtora de preparados ainda poderia ser abastecida por diferentes olarias (Dias et al., 2012). 

Não se sabe ainda como se dava a exploração do sal na Lusitânia. Trata-se da atividade económica mais difícil de detetar a partir de indícios arqueológicos. Atualmente, não há sequer um único indício de salina detetado no contexto romano em território atualmente português (Bombico, 2017: 105) 18. O problema é agravado pelo facto de que as técnicas de exploração das salinas mantiveram-se durante séculos, fazendo com que a sua localização permanecesse a mesma, dificultando, portanto, a identificação de contextos (Fabião, 2009b: 578). 

18 Embora conheça-se em Vigo, para os séculos VI – VII.  

Garcia Vargas e Bernal Casasola (2009: 166-168) discutem as dificuldades em se escavar registos de salinas romanas escavadas na argila, alertando que salinas de evaporação construídas nos estuários de rios são praticamente impossíveis de serem diagnosticadas. Todavia, os autores estimam que vastas áreas na boca do Sado deveriam possuí-las. De facto, estudos geo-arqueológicos (Menateau et al. 2003) indicam que a costa ocidental da península possuiu grandes salinas, especificamente na boca dos principais rios: Tejo, Sado; no litoral do Algarve e na baía de Cádis e Algeciras. 

Não se sabe com exatidão a forma como o sal era obtido nos casos em que as cetárias não estavam servidas de um abastecimento direto de salinas. Talvez algum método alternativo pudesse suprir o sal a partir das areias da praia (Hesnard, 1998), embora dificilmente se possa obter sal em larga escala com esse procedimento. Certamente alguma linha comercial distribuiria o sal, mas tampouco se sabe como ocorria essa logística. O transporte de salmoura em recipientes (cerâmicos ou não) pode ser uma opção pouco provável, segundo Villaverde Bem (2001). Garcia Vargas e Bernal Cassola (2009) mencionam a existência dos exactores campi salinarum romanorum, em 135 d.C., em Óstia. Assim, oficiais da carreira equestre eram designados para a vigilância e fiscalidade da atividade de extração do sal. 

As oficinas dispunham de poços, cisternas e depósitos para o armazenamento da água. A água era fundamental para a higienização das oficinas e para o preparo das salmouras. A existência de fornos e fornalhas nas oficinas apontam para o preparo dos molhos em recipientes cerâmicos durante um processo de aquecimento (Ponsich, 1988: 80). 

A tradição textual antiga alerta-nos quanto à excelente reputação dos preparados de peixe provenientes do oeste. O atum e a cavala do Atlântico são sempre considerados produtos superiores para a confeção das conservas (Celso “Medicina” 2, 18, 7). Isto reforça a perceção de que, ao menos na produção dos preparados, o senso comum romano prezava mais o pescado azul do que o branco, talvez também por uma valorização cultural ao elemento mais exótico como sinónimo de refinamento gastronómico. 

Por outro lado, peixes de carne branca também eram largamente aproveitados para a produção de preparados. A arqueologia comprovou a ocorrência de vestígios de corvina e pargo do Atlântico (Garcia Vargas, Albelda, 2006). Essa omissão de peixes de carne branca pelos autores antigos sugere a existência de produções baseadas em peixes mais acessíveis e menos valorizados, em detrimento dos produtos considerados de alta qualidade. 

Infelizmente, não há, nas fontes clássicas disponíveis, referências diretas ao processo de produção dos preparados de peixe lusitanos. Estrabão menciona as riquezas do Tejo em peixes e ostras. Pode-se concluir que os preparados de peixe lusitanos incluíam tanto o peixe salgado como os molhos, graças a uma menção do Édito Máximo de Diocleciano, em 301 d.C., que os diferenciava enquanto categorias 19 (Fabião, Guerra, 1993: 1000). 

19 Enquanto o peixe salgado recaía na categoria de peixes, o liquamen (primum e secundum) recaía na dos óleos. (Edictus praetiis, 3.6. e 3.7). Ver também a tabela 5 desta obra.  

Estudos recentes sobre a terminologia dos produtos preparados à base de peixe nas fontes literárias são inconclusivos, embora promovam reflexões filológicas interessantes (Grainger, 2014). Apesar de sua inegável utilidade, a utilização de fontes literárias e documentais antigas para o estudo da produção dos preparados de peixe consiste num recurso incompleto. 

A arqueologia, amparada pela cooperação com a química e a arqueozoologia 20 dedicou-se ao estudo laboratorial da fauna marinha empregada nessa produção, e cujos vestígios ainda se podem encontrar nos contextos arqueológicos (terrestres ou  submarinos) da produção (oficinas) e comércio (material anfórico e similares) dos preparados de peixe. 

20 Mais precisamente, uma “arqueoictiologia”.  

Esse tipo de estudo permitiu estabelecer, por exemplo, que na vizinha Bética, as cetárias, quando recebiam peixes de dimensões maiores e intermédias, recebiam-nos sem as cabeças e vísceras. Isso evitava a autólise da carne pelos sucos gástricos e a deterioração do sabor da carne pelo contato com o sangue (Bruschi, Wilkens, 1996; Desse-Berset, Desse, 2000: 75-79). 

Em outros casos, quando se mantinha a cabeça ao peixe, o procedimento de evisceração teria sido diferente (Desse-Berset, Desse, 2000: 80-82). A quantidade de sangue acumulada pela cabeça poderia ser insignificante para merecer tratamento, ou talvez este fosse mesmo coletado para a confeção de produtos derivados da conserva, como o garum haimation. 

I. 4. O estado da arte da produção Ibérica

O primeiro estudo acerca da existência de uma indústria de conservas e preparados de peixe no mundo romano datam de princípios do século XIX (Köhler, 1832). Todavia, o interesse académico pelo tema veio a desenvolver-se apenas mais tarde, quando se publicaram os tituli picti de ânforas piscícolas de Pompeia (Zangemeister, Schöne, 1871; Mau 1909) e Roma (Dressel, 1879). 

A partir do século XX, retomam-se os estudos, agora concentrados no debate sobre aquelas mesmas ânforas (Remark, 1912; Bohn, 1925). Nesse contexto, surgem estudos dedicados a fontes literárias sobre os preparados de peixe romanos, traçando paralelos antropológicos com uma produção análoga, da tradição culinária do extremo-oriente (Grimal, Monod, 1952; Jardin, 1961; André, 1981). 

O primeiro estudo dedicado especificamente às indústrias do género no litoral do Mediterrâneo ocidental é relativamente recente (Corcoran, 1957). Por sua vez, a obra de Corcoran, de natureza genérica, recebeu um reforço consistente produzido por uma investigação posterior, focada no litoral mediterrâneo espanhol e marroquino (Ponsich, Tarradell, 1965). 

Este estudo estabeleceu a expressão “Círculo del Estrecho” (posteriormente revisto como um “circuito del estrecho”) para designar o espaço geopolítico contido pelo extremo sul da Península Ibérica e o litoral atlântico marroquino e que teriam estado sob influência direta de Cádis durante o período fenício-púnico. Naquele espaço havia um circuito comercial que articulava oficinas de preparados de peixe, salinas e atividades agrícolas. Esse circuito económico permanecera em atividade ao longo do período romano, cabendo a Cádis uma posição privilegiada na influência que a Bética exerceria naquela região ao longo do período imperial. 

Tratava-se então do primeiro estudo sistemático de evidência arqueológica sobre as oficinas locais de salga e conserva de peixe. Esse estudo regional da temática veio ainda receber um importante estudo de síntese (Curtis, 1979), que incluiu um diálogo entre os tituli picti e as suas respetivas ânforas. Posteriormente, este mesmo estudo foi expandido para uma análise de todo o litoral mediterrâneo (Curtis, 1991). 

Não obstante, Cravioto (2015: 178ff.) explica que o conceito original de “Circulo del Estrecho” permaneceu algo obscuro e sempre foi empregado de forma marginal ao longo dos anos 70 – 80, o que permitiu que surgissem definições alternativas para o termo, até a definitiva consolidação de uma proposta final de “circuito”. Tal ambiguidade foi abordada ao longo do século XXI em congressos internacionais, sobretudo o I Seminário Hispano-Marroquí de Especialización en Arqueología, realizado em Cádis, 2006; e o VI Encuentro de Arqueología del Suroeste Peninsular, em Mérida, 2014. 

Ainda no final dos anos 1980, as atenções sobre a produção dos preparados de peixe nos limites ocidentais do Mediterrâneo receberam um consistente estudo de caso sobre a Hispânia (Ponsich, 1988). 

Garcia Vargas e Bernal Casasola (2009: 133-134) explicam que a partir dos anos 1990 ocorreu um intenso desenvolvimento urbanístico no litoral ibérico, ao mesmo tempo que órgãos de administração e conservação do património cultural e arqueológico fortaleceram-se na Espanha, Portugal e Marrocos. 

Nesse espírito, com o aumento das intervenções arqueológicas, aumentou-se o volume de dados empíricos novos acerca das indústrias de salga e conserva de peixe no ocidente. (Lagóstena Barrios, 1996, 2001; Bernal Casasola, 1998ª, 1998b; Bernal Casasola, Lorenzo, 2002). Assim, o novo século tem início com obras dedicadas a recuperar um estado da arte atual para a problemática (Lagóstena Barrios, 2001; Étienne, Mayet, 2002). 

De facto, o século XXI testemunhou o crescimento dos congressos internacionais dedicados ao estado da arte dos conhecimentos da indústria dos preparados de peixe, seja no caso hispânico (Bernal Casasola, Lagóstena Barrios, 2004), seja num quadro mais geral sobre o Mediterrâneo (Lagóstena Barrios, Bernal Casasola, Arévalo, 2007). 

Os diversos encontros científicos ocorridos na Península Ibérica ao longo da primeira década do século XXI demonstram que a temática ainda possui grande apelo no meio académico: San Fernando, em 2000 (AA.VV., 2004); Puerto de Santa María, em 2006 (AA.VV., 2006ª) e Setúbal, em 2006 (AA.VV., 2006b); no âmbito internacional, ocorreram ainda o Congresso de Boulogne-sur-Mer sobre a exploração de recursos marinhos em 2005 (Napoli, 2008) e o Seminário Oglio e pesce in epoca romana. Produzione e commercio nelle regionni dell’Alto Adriatico (Padua, 2009). 

Uma exposição organizada em Algeciras em 2004 (Arévalo, Bernal Casasola, Terremocha, 2004) apresentou os resultados das últimas intervenções em Baelo Claudia (Arévalo, Bernal Casasola, 2007). Essa exposição motivou uma síntese geral dos conhecimentos sobre a produção dos preparados de peixe na Península Ibérica (Bernal Casasola, Sayez, 2008). 

I. 4. 1. Acerca da produção Lusitana

Em Portugal, as duas décadas do século XXI foram marcadas por uma intensificação das sondagens arqueológicas e, consequentemente, da disponibilidade de mais informações sobre a problemática. Essencialmente, os estudos dedicaram-se à questão da produção de preparados de peixe em contexto pré-romano, a sua evolução ao longo do período imperial e, finalmente, o declínio dessa produção, já durante a antiguidade Tardia. 

Foi estabelecido um consenso de que o sudoeste ibérico terá recebido uma profunda influência fenício-púnica entre os séculos VIII – IV a.C. Lagóstena Barrios (2001) comprovou a existência de centros produtores de preparados de peixe no Algarve do período púnico. Tavares da Silva (2005) estudou a presença fenícia nos estuários do Sado e do Tejo. 

É interessante ressaltar que Diogo (1987) já identificara uma forte influência púnica na tipologia de ânforas “Lusitana 1” encontradas no Sado. Tavares da Silva (2011) complementa os indícios dessa influência ao localizar no Sado exemplares de moedas copiadas de um modelo gaditano. Assim, apesar do consenso de que havia uma produção de preparados de peixe no período púnico, ainda não há dados capazes de estabelecer uma data para essa produção, nem se esta experimentou fases de desenvolvimento e/ou declínio. 

Uma referência essencial para o estudo da arqueologia da produção dos preparados de peixes em Portugal é a obra de Edmonson (1987), articulando pela primeira vez a produção dos preparados de peixe à dos seus contentores anfóricos. Ainda de autoria estrangeira, em cooperação com arqueólogos portugueses, seguem Mayet, Shmidt e Tavares da Silva (1996), a explorarem a indústria oleira e de preparados de peixe no estuário do Sado. Étienne e Mayet (1998) publicaram uma “cartografia crítica” dos centros produtores de preparados de peixe em toda a Península Ibérica. Posteriormente (2002) a dupla revisitou o tema, atualizando o debate. 

A parceria de Mayet e Tavares da Silva prossegue em outra obra (1998) onde se debate as ânforas de Pinheiro e uma vez mais no século XXI (2002), discutindo-se o material anfórico piscícola em Abul. Mayet publicou um estado da arte para o estudo das ânforas lusitanas (2001) e um estudo similar, reunindo dados mais atualizados foi então publicado por Fabião (2008). 

Uma bibliografia essencial para o estudo desse tema em Portugal também deveria incluir a obra de Morais e Fabião (2007), onde são discutidos os aspetos económicos dos centros oleiros da Lusitânia. 

As atas de encontros científicos constituem numa valiosa fonte de informações. O “Simpósio Internacional Produção e Comércio de Preparados Piscícolas durante a Proto-História e a Época Romana no Ocidente da Península Ibérica” (Uma homenagem a François Mayet), ocorrido em 2004, publicou as suas atas na revista Setúbal Arqueológica, volume 13 (2006). Esta publicação promove um exame completo do estado da arte acerca da produção oleira específica para os produtos piscícolas, bem como um estudo sobre todas as unidades produtoras dos preparados piscícolas na península. 

Bombico (2017) apresentou recentemente uma tese atualizando as relações entre os centros produtores de preparados de peixe lusitanos e os centros oleiros a eles associados. Contudo, dados precisos quanto ao volume da produção e a cronologia das produções ainda não são possíveis de serem estimados. 

CAPÍTULO II: OS CENTROS PRODUTORES LUSITANOS

Recentemente foi possível à arqueologia incrementar o volume de informação acerca da presença romana no território atualmente português entre os meados do século I a.C. e I d.C. O desenvolvimento urbano da Lusitânia e o subsequente aumento da presença de cidadãos romanos no território relacionam-se com uma nova realidade de assentamentos criados ex-novo e à expansão de centros populacionais indígenas, agora elevados em categoria jurídica. Nesse período também se verifica um expressivo aumento de importações cerâmicas. 

Entretanto, há uma série de fatores externos que também devem ser levados em conta para a compreensão dessas transformações. São elas: as últimas campanhas militares na península, nas Cantábrias (12 a.C. – 19 d.C.), ainda sob o governo de Augusto, e a criação do limes germânico (12 a.C.-9 d.C.) (Fabião, 2005: 84); a anexação da Mauritânia (42 d.C.) já sob o reinado de Cláudio, contando com apoio logístico da Bética e da Lusitânia (Mantas, 2002 – 2003: 457) e a consolidação do domínio romano sobre a Britânia (43 d.C.). A anexação da Britânia, segundo Fabião (1998: 139), é fundamental para garantir importância estratégica do nordeste hispânico na logística de abastecimento das províncias do norte europeu (a nova finis terra romana). 

Pode-se então perceber que o principado de Cláudio, de 41 d.C. a 54 d.C., foi direcionado para consumar o que autores portugueses denominam “uma política atlântica” romana (Fabião, 2005: 84; Mantas, 2002-2003: 459; Bombico, 2017: 72). Bombico caracteriza o período como uma época de exploração progressiva dos recursos naturais, enfatizando os recursos mineiros (estimulando o desenvolvimento do comércio e da infraestrutura provinciais) e os recursos marinhos (sal e peixe). Assim, a economia lusitana, tal como propõe Edmonson (1987), possivelmente baseou-se no binómio minério – preparados de peixe 21. 

21 Ver nota 5.  

Ao longo do período republicano predominam as importações de ânforas itálicas (Dressel 1) no território lusitano, bem como contentores provenientes da baía de Cádis e do vale do Guadalquivir (ânforas ovoides e Haltern 70). Também se atesta a presença de cerâmica de verniz negro da Campania e de paredes finas itálicas (Bombico 2017: 72). Esses padrões de importação estão bem representados no vale do Tejo, na Alcáçova de Santarém, Monte de Castelinhos e Olisipo (Arruda, Viegas, 2014; Pimenta, 2014; Almeida, 2008) 22. No estuário do Sado elas ocorrem em Salacia (Pimenta, Sepúlveda e Ferreira, 2006; Sousa et al., 2008). No Algarve, em Monte Molião-Lagos (Arruda, Sousa, 2012). 

22 Nesses estudos sobre Alcáçova de Santarém, na área do castelo de São Jorge em Lisboa, e em Monte dos Castelinhos apresentam a presença de ânforas de vinho itálico em contentores Dressel 1, testemunhando o abastecimento de tropas.  

Esses padrões de importação reforçam a teoria proposta por Mantas (1996: 348), de que Cádis terá exercido um monopólio marítimo e comercial sobre o Atlântico nesse período inicial da romanização do território. Assim, Cádis seria o principal centro distribuidor e de concentração de cargas destinadas aos territórios mais ocidentais da península. 

Assim, entre fins do século I a.C. e meados do século I d.C. o Atlântico foi usado como via de abastecimento institucional de produtos vinícolas e oleiros béticos, que incluíam produtos preparados à base de peixe na região de Cádis. Essa distribuição é atestada pelos vestígios de ânforas Haltern 70 (vinho e defrutum), Dressel 20 (azeite) e Beltrán II e Dressel 7/11 (preparados de peixe), ao longo da faixa atlântica peninsular, alcançando a Britânia e o limes germânico. Fabião (1993-1994) já alertara quanto a presença de ânforas tipo Dressel 20 de azeite bético na costa lusitana, sugerindo a existência de “anonna militaris” e de uma rota atlântica ligando o Mediterrâneo ao norte da Europa. 

Posteriormente, a implantação e desenvolvimento de cidades marítimas na Lusitânia possibilitou o surgimento de centros produtores de preparados de peixe, bem como o de centros oleiros destinados a abastecer aquela produção com o envase para o transporte. As características naturais do oceano Atlântico, com as subidas de marés e correntes mais fortes, condicionaram as fundações marítimas romanas aos portos naturais protegidos, ou aos estuários (Mantas, 2000). 

Essa mesma estratégia havia sido adotada pelos fenícios na instalação de suas feitorias no ocidente ibérico, no início da Idade do Ferro (Aubet, 2001). Por isso mesmo, os portos romanos são, antes de tudo, assentamentos indígenas que passaram por um processo de urbanização sob a administração romana. Essas cidades marítimas estão situadas em pontos estratégicos no litoral, facilitando tanto o comércio como a integração à comunicação com rotas terrestres, de modo que já exerciam atividades económicas na altura da conquista romana. Assim, a promoção desses assentamentos a novos estatutos administrativos sob os romanos era o reconhecimento por esses últimos da importância e do potencial económico daqueles centros urbanos (Mantas, 1990, 2000). 

Os chamados verdadeiros portos romanos, segundo Mantas (1990: 160), seriam então: Olisipo (Lisboa), Salacia (Alcácer do Sal), Ossonoba (Faro) e Balsa (Luz de Tavira). Bombico (2017, 91) complementa a lista, incluindo portos de uma importância secundária, como Scallabis (Santarém), Aeminium (Coimbra) e Myrtili (Mértola), no interior dos cursos do Tejo, Mondego e Guadiana, respetivamente. Esses centros eram importantes no sentido de servirem de portos de ligação para o interior do território provincial. 

Blot (2003) sugere ainda que os pequenos cursos fluviais, como o Minho, Lima, Cávado, Ave, Douro, Ria de Aveiro, Mondego e a zona das lagoas da Extremadura também desfrutavam de alguma importância económica e/ou logística. O mesmo é dito pela autora (Blot, 2005) acerca de pequenas ilhas da costa, como a Ilha do Pessegueiro e a Ilha de Berlenga como pontos de escala para a navegação atlântica. Áreas de fundeadouro como a entrada dos estuários do Tejo e do Sado, o Cabo Espichel e a baía de Cascais também são áreas de fundeadouro onde foram encontrados vestígios de âncoras da época romana (Alves et al., 1988-1989). 

O uso preferencial de baías protegidas e de estuários de rios traz benefícios logísticos, como a possibilidade de descarregar navios com o auxílio de “balsas de serviço”, similares àquelas que Estrabão refere ao descrever o procedimento rotineiro no Tibre (3.3.1). Assim, existe a possibilidade desses portos haverem recebido portos de madeira, ou até mesmo não haverem recebido qualquer estrutura portuária particular (Bombico, 2017: 92). As instalações portuárias romanas na Lusitânia eram, a rigor, um conjunto de ancoradouros e portos que se complementavam entre si (Mantas, 2000; Blot, 1998, 2003). 

II. 1. A geografia da produção Lusitana

As unidades produtoras de preparados de peixe localizavam-se nas imediações de cidades portuárias e/ou integradas a redes comerciais para o seu transporte e exportação. Essas zonas de produção dos produtos preparados à base de peixe e os centros oleiros a elas associados estão concentrados principalmente no sul do território português. 

Os seus núcleos situam-se em quatro grandes regiões: o estuário do Tejo, o estuário do Sado, a costa alentejana e a costa algarvia (Diogo, 1987: 181). Contudo, Bombico (2017, 97-98) alerta para a descoberta de um centro de produção oleira em Peniche, o que indica a possibilidade de novos centros ainda por descobrir ao longo do território ao norte do Tejo 23. 

23 A autora alerta (2017: 98) para o facto de existirem cetárias identificadas a norte do Tejo, para além do território lusitano. Isto é, ao longo da costa atlântica da Tarraconensis/Gallaecia, Gallia Aquitania e Gallia Lugdunensis. Mas, como não há até o momento qualquer indício de cetárias na região de Peniche, o local estará excluído deste trabalho.  

Edmonson (1987: 190) propôs uma tipologia onde podemos distinguir três modelos de oficinas de preparados de peixe em razão de sua localização: oficinas rurais (villae), urbanas e semi-urbanas. Por outro lado, Fabião (2009b) questiona os critérios para o diagnóstico de oficinas “semi-urbanas”, uma vez que alguns sítios podem apresentar ambiguidades (como Troia e a Ilha do Pessegueiro, que poderiam integrar “polos industriais”). 

As oficinas rurais, em funcionamento sob o modelo de villa, integrava a exploração agrícola e a marítima, de modo que, ao menos na Lusitânia, não há ainda um caso específico de oficina rural. 

Um outro modo de se identificar tipos de unidades produtoras pode ser através das suas dimensões e organização arquitetónica (Bombico, 2017: 123). Há centros produtores com oficinas de tamanhos diversos, algumas delas contendo um grande número de cetárias, como Troia. Do mesmo modo, há ainda aqueles centros com unidades de pequenas dimensões, compostas por poucas oficinas de escala menor. 

A seguir estão listadas todas as cetárias diagnosticadas e/ou propostas (sem confirmação) até o final de 2016, segundo Bombico (2017: 114-120). 

24 Leia-se “capacidade instalada”, ou seja, qual seria a produção máxima estimada, caso todas as cetárias estivessem cheias e em operação simultaneamente.  

II. 1. 1. Grande Área do Estuário do Tejo

Há uma forte concentração de unidades de produção de preparados de peixe nas imediações de Olisipo, sugerindo que esta certamente foi uma das mais relevantes atividades económicas da cidade (Filipe, Fabião, 2006/2007: 116). 

No estuário do Tejo, as unidades de produção foram organizadas em torno do centro urbano-portuário de Olisipo. A listagem que se segue descreve, em linhas gerais, as características e o estado de cada centro produtor diagnosticado ou proposto. 

§ 1 Olisipo:

Ao longo do século XXI, o desenvolvimento económico português estimulou o aumento de intervenções emergenciais em Lisboa. Consequentemente, foi possível coletar novas informações arqueológicas sobre a época romana da cidade. Nesse contexto, foi possível traçar um perfil de intensa atividade de centros produtores de preparados de peixe na urbe. 

As onze oficinas de Olisipo estudadas estiveram em operação entre os séculos I e V d.C. Estima-se que a unidade da Rua dos Correeiros tinha uma capacidade instalada de até 288 m3. 

Figura 2: Unidades de transformação de preparados de peixe conhecidas no centro de Lisboa. (Fernandes, Marques, Filipe, Calado, 2011, fig.20); apud Bombico, 2017: 121. 

§ 2 Porto Brandão:

Na margem sul do estuário, em Caparica, foi identificada uma oficina de salga de peixe na Rua Bento de Jesus Caraça (Porto Brandão). O local ainda não havia sido escavado em Janeiro de 2017 (Fabião, 2017), mas existem à mostra dois tanques revestidos por signinum, indicando a possibilidade de se tratar de cetárias (Santos, Sabrosa, Golveia, 1996, Fabião, 2017). 

Estão diagnosticadas, no total, dez oficinas produtoras de preparados de peixe na margem sul do Tejo. Contudo, há muito pouca informação sobre o seu período de funcionamento, dimensões e capacidade instalada. 

Uma exceção é feita para Cacilhas (Rua Alfredo Dinis), de onde, graças a uma intervenção de emergência, ainda se consegue informações de que teria possuído dez cetárias e estado em funcionamento entre os séculos I e II d.C. (Fabião, 2017). 

Figura 3: Unidades produtoras da margem sul do Tejo (Fabião, 2017). 

1- Ramalha; 2 – Cacilhas; 3 – Quinta do Almaraz; 4 – São Paulo; 5 – Mercado do Monte; 6 – Chegadinho; 7 – Bento Gonçalves; 8 – Quinta da Torre; 9 – Quinta do Outeiro; 10 – Porto Brandão 

§ 3 Cascais:

Em conformidade com as crescentes intervenções arqueológicas de contracto e minimização de impactes na zona metropolitana de Lisboa, novas cetárias foram identificadas. Já no exterior do estuário do Tejo, foram diagnosticadas 7 cetárias na Rua Marques Leal Pancada, em Cascais. 

Esse conjunto teria capacidade para cerca de 130 m3 e teria funcionado entre os séculos I e II d.C.; uma conclusão feita com a ajuda de moedas datando dos principados de Domiciano e Antonino Pio (Cardoso, 2006). 

Figura 4: Cascais e a Rua Marques Leal Pancada (Fabião, 2017 a). 

Figura 4a: Cascais (Rua Marques Leal Pancada). 

§ 4 Casa do Governador da Torre de Belém:

Seguindo o mesmo perfil de intervenções arqueológicas de minimização de impactes, agora no contexto de uma obra de construção de um estacionamento, foi encontrada uma das maiores unidades de produção de preparados de peixe até o momento conhecidas. 

As 34 cetárias de dimensões variadas com uma capacidade instalada de até 335 m3. Essa unidade esteve em funcionamento entre os séculos I e V d.C.

Esse conjunto teria capacidade para cerca de 130 m3 e teria funcionado entre os séculos I e II d.C.; uma conclusão feita com a ajuda de moedas datando dos principados de Domiciano e Antonino Pio (Cardoso, 2006). 

Figura 5: Localização da Casa do Governador da Torre de Belém (Filipe e Fabião, 2006/2007: 104). 

Figura 6: Casa do Governador: dimensões e volume das cetárias da unidade de produção (Filipe e Fabião, 2006/2007: 110 – 111). 

II. 1. 2. Grande Área do Estuário do Sado

Se tomarmos como modelo a organização das unidades de produção em órbita de um centro urbano-portuário, como no caso de Olisipo, percebe-se que a mesma estratégia foi adotada no estuário do Sado, então sob a dependência administrativa de Salacia (Alcácer do Sal). 

Há no Sado uma concentração de olarias no curso inferior do rio (Quinta da Alegria, Zambujalinho, Pinheiro, Abul, Enchurrasqueira, Bugio e Barrosinha). As oficinas de produção de preparados de peixe estão concentradas na área urbana de Setúbal, ao longo da margem norte do estuário (Comenda, Rasca e Creiro) e na margem sul, na península de Troia (Tavares da Silva, Soares e Wrench, 2010). 

Figura 7: Complexo produtivo do Sado (Soares e Tavares de Silva, 2018: 15). 

Figura7ComplexoprodutivodoSado

1 – Barrosinha; 2 – Alcácer do Sal; 3 – Bugio; 4 – Enchurrasqueira; 5 – Abul; 6 – Pinheiro; 7 – Zambujalinho; 8 – Santa Catarina; 9 – Quinta da Alegria; 10 – Pedra Furada; 11- Setúbal; 12- Alferrar; 13 – Pedrão; 14 – Chibanes; 15 – Painel das Almas (Azeitão); 16 – Comenda, 17 – Rasca; 18 – Outão; 19 – Creiro; 20 – Sesimbra; 21- Troia. 

§ 5 Setúbal (Travessa Frei Gaspar e Praça do Bocage):

Trata-se de outro caso de intervenção arqueológica de emergência em área urbana. Uma intervenção arqueológica em 1979 investigou uma área de 120 m2 pertencente ao centro histórico de Setúbal. 

Sob a Travessa Frei Gaspar foi encontrada uma oficina de preparados de peixe, possivelmente do período flaviano, em formato de “U” ou “L”. Seus tanques eram revestidos por uma argamassa compacta impermeável. Essa oficina teria funcionado até o século III d.C., sendo abandonada em seguida (Soares, Tavares de Silva, 2018: 16). 

No ano seguinte, em 1980, outra sondagem do centro histórico, com 98 m2, foi realizada e uma nova fábrica foi encontrada sob a Praça do Bocage, em Setúbal. As cetárias estão organizadas em duas fileiras paralelas de tanques, separadas por um pequeno corredor que tem acesso direto ao pátio central (Tavares da Silva, Coelho-Soares, 1980-81). 

Esse corredor também delimitava em duas tipologias de tanques: aqueles que estavam revestidos por uma argamassa compacta impermeável de cal, areia e brita calcária (destinados ao fabrico de salgas), e os que eram revestidos por uma simples camada impermeabilizadora de argila (possivelmente empregados como reservatórios de água ou tanques de peixes). 

Essa oficina operou até o final do século II d.C. (Soares, Tavares de Silva, 2018: 

Figura 8: Oficina de salgas de peixe da Praça do Bocage (Soares e Tavares de Silva, 2018: 18). 

Figura 8a: Oficina da Travessa Frei Gaspar (Soares e Tavares de Silva, 2018: 17). 

§ 6 Comenda (São Julião, Nossa Senhora da Anunciada e Santa Maria da Graça):

Existem vestígios de tanques de salga, além de um aqueduto e um estabelecimento termal. Nos anos 1970’s ocorreram algumas escavações arqueológicas, mas nunca se publicou resultados ou estudos topográficos (Fabião, 2018ª). Vestígios anfóricos encontrados in situ estimam a ocupação do sítio entre os séculos I e IV d.C. (Costa, Marques, 1905; Trindade, Diogo, 1996) 

§ 7 Rasca (São Julião, Nossa Senhora da Anunciada e Santa Maria da Graça):

Costa (1905) menciona a existência de tanques de salga na área. Não se sabe mais nada (Tavares da Silva, Coelho-Soares, 1986, 1988; Fabião, 2018b). 

Figura 9: Rasca e Comenda (Fabião, 2018ª). 

§ 8 Creiro (São Lourenço e São Simão):

O complexo do Creiro foi diagnosticado em 1987. Ele é constituído por uma fábrica com pelos menos 11 cetárias, uma zona de armazéns que inclui pelo menos uma dolium, uma área residencial e, possivelmente uma segunda fábrica, ainda por investigar. Estruturas de uma fase mais tardia de ocupação incluem um sistema de encanamento (condução hidráulica) e uma estrutura termal (Tavares da Silva, Coelho-Soares, 1987, 2016). 

As cetárias estão dispostas em formato de “U” simétrico e possuíam uma capacidade instalada estimada em 31,63 m3. A estrutura foi reocupada em meados do séc. IV d.C., mas apenas parcialmente explorada. Não se sabe se nesse novo período de utilização ainda se produzia a salga. Durante a época islâmica o espaço foi reocupado e o complexo foi substituído por novas construções. 

Figura 10: Localização do sítio arqueológico do Creiro na Carta Militar Portuguesa (Tavares da Silva e Coelho-Soares, 2016: 212). 

Figura 10a:Planta da oficina e corte dos tanques 1- 5 (Tavares da Silva e Coelho-Soares, 2016: 216). 

§ 9 Sesimbra (Avenida da Liberdade):

Trata-se de um dos primeiros estudos arqueológicos do contexto romano em Sesimbra, iniciado em 2007. Não se sabe se a unidade produtora estava isolada ou integrada num complexo maior. Os achados localizam-se na ZEP da fortaleza de Santiago. 

Ali estão diagnosticados 7 tanques de salga alinhados. Alguns deles medem 2,40 m por 2,69 m por 1,29 m, o que sugere um grande centro produtor. Existem vestígios dos recursos marinhos disponíveis, mas estes ainda não foram estudados. Estima-se que o centro esteve a produzir entre os séculos I e V d.C. (Pereira 2014). 

Figura 11: Sesimbra: localização de 4 dos 7 tanques diagnosticados (Pereira, 2014: 157). 

§ 10 Troia:

O centro produtor de preparados de peixes de Troia é considerado, até ao momento, o maior de todo o mundo romano, com 25 oficinas identificadas (Vaz Pinto, Magalhães, Brum, 2011). As suas 159 cetárias em condições de análise possuem uma capacidade instalada superior a 3218,53 m3. 

A sua localização era privilegiada: entre o Atlântico e a entrada do estuário do Sado. O baixo Sado, além de rico em recursos marinhos era um centro explorador de salinas e pontilhado por grandes olarias. Troia foi ocupada desde meados do século I d.C. até, possivelmente, o final do século VI. O sítio tem sido alvo de intervenções e escavações desde o século XVIII, passando a ser controlado pela Sociedade Arqueológica Lusitana a partir de sua fundação, em 1848. Os trabalhos desenvolvidos no século XIX localizaram uma área de habitações e estruturas termais. 

Ao longo do século XX, de 1948 aos anos 1970’s, o Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa, assumiu a direção dos trabalhos, localizando, novas estruturas termais e as primeiras oficinas de processamento de peixe. 

A localidade fora no passado um importante vicus industrial. Além dos centros produtores, Troia possuía toda uma estrutura hidráulica com termas (construídas entre os séculos II e III), uma necrópole (utilizada entre os séculos I e V) e, entre fins do século IV e início do século V, uma basílica paleocristã, implantada sobre parte de uma oficina de salga (Magalhães 2010: 10). 

No momento, considera-se que houve duas fases de ocupação. Durante os séculos I e II d.C., Troia teria experimentado o seu apogeu. A sua produção de molhos e preparados de peixe atendiam não apenas a Lusitânia como era exportada para outras partes do império, incluindo a sua capital, Roma. 

Ao final do século II ocorreu uma interrupção da atividade das oficinas. Estas passaram por uma reforma, subdividindo muitos dos seus tanques em metades. Concluída essa redução de dimensões, a produção continuou entre os séculos III e V d.C. Sabe-se que no século V as oficinas davam preferências aos peixes pequenos. 

De acordo com o estudo de Sónia Gabriel (LARC-Laboratório de Arqueociências): Contextos da segunda metade do século II: sardinha (Sardina pilchardus), biqueirão (Engraulis encrasicolus), choupa (Diplodus vulgaris), cavala (Scomber scombrus), robalo (Dicentrarchus labrax), anchova (Pomatomus saltatrix) e capatão (Dentex sp.) (Pinto, Magalhães, Brum, 2017; 2017ª). 

Contextos do segundo quartel do século V abrangem a sardinha (Sardina pilchardus), biqueirão (Engraulis encrasicolus), choupa (Diplodus vulgaris), cavala (Scomber scombrus), pescada (Merluccius merluccius), carapau (Trachurus trachurus), besugo (Pagellus acarne), dourada (Spaurus aurata), robalo (Dicentrarchus labrax), anchova (Pomatomus saltatrix), peixes cartilagíneos (Chrondrichthyes indet.), esturgeão (Acipenseridae), capatão (Dentex sp.), sargo (Diplodus sp.), pargo (Pagrus 

sp.) e outros grandes peixes ainda não identificados (Pinto, Magalhães, Brum, 2017; 2017a). 

O declínio do império ocidental afetou a produção dos preparados de peixe, mas ainda assim, o sítio continuou ocupado por mais um século. Entretanto, a partir do século V, já não se pode afirmar, com certeza, que permanecia ali uma estrutura industrial. Sabe-se da existência de um forno de pão e há materiais de importação, nada mais. 

Magalhães (2010: 110) conclui que o abandono da oficina 1 terá ocorrido, no mais tardar, em meados do século V, dado que no segundo quarto do século verifica-se um decréscimo acentuado na importação de terra sigillata. A autora confirma a presença romana no local até meados do século VI, embora reduzida, na necrópole tardia instalada sobre a área da oficina. 

Figura 12: Localização das 25 unidades produtoras identificadas atualmente na Península de Troia (Soares e Tavares de Silva, 2018: 29). 

Figura 12a: Mapa das Oficinas 1 e 2 e das termas (a Nordeste da Oficina 1) (Étienne, Makaroun e Mayet, 1994; apud Magalhães, 2014: 250). 

II. 1. 3. Grande Área da Costa Alentejana

O litoral alentejano possui uma estrutura produtora mais modesta, se comparada com o complexo produtivo do Tejo e do Sado. Há diagnosticado, até o momento, seis oficinas em Sines (1-2 e A-D), somando 25 tanques e cerca de 120m3 de capacidade instalada, embora Bombico (2017: 121) estime que esse valor tenha estado em torno de 200 m3. 

Na Ilha do Pessegueiro há duas oficinas escavadas, totalizando cerca de 77,7 m3 de capacidade instalada. 

§ 11 Sines I (Largo João de Deus 1 e 2):

Sines possuiu várias oficinas centradas numa mesma área. A independência dessas oficinas entre si não é totalmente clara, tal como acontece em Troia. Entretanto, em ambos os casos não se tem ainda o conhecimento da extensão total dos seus respectivos complexos, principalmente por causa da erosão, que provocou a destruição das arribas junto à frente marítima. 

O edifício (1) possui 7 tanques cobertos, dispostos em “U”, e 1 pátio central, aberto. A oficina entrou em funcionamento em meados do século I d.C. Os tanques III e VI foram remodelados em um período posterior, e portanto, não se sabe as suas dimensões originais. 

Na época dessa remodelação, foram abandonados os tanques I, II e VII, convertidos em uma zona residencial. Assim, apenas 4 tanques operavam em sua fase final de produção. Em algum momento do século IV d.C. a oficina foi desativada definitivamente (Tavares da Silva e Coelho-Soares, 2004, 2006). 

Uma segunda oficina foi identificada em 1961, sendo que esta contaria com um forno próprio. O edifício possuía os 9 tanques cobertos e dispostos ao redor de um pátio central, descoberto. A sua capacidade instalada seria de 39,6 m3. 

Estima-se que as oficinas 1 e 2 estivessem integradas ao mesmo complexo produtor. 

Figura 13: Largo João de Deus: oficinas 1-2 e A-D (3-5) (Fabião, 2018c). 

Figura 13a: Cetárias I – IX do Largo João de Deus (1). 

Figura 13b: Largo João de Deus (2) (Fabião, 2018d). 

Figura 13c: Cetárias I-VII do Largo João de Deus (2) (Fabião, 2018d). 

§ 11. 1 Sines II (Rua Ramos da Costa – “Fábricas A-D”):

Em uma intervenção de emergência foi encontrada uma nova oficina (A-E) a poucos metros do núcleo anterior (1-2). A oficina A (3) estava bastante danificada, de modo que há pouca informação disponível sobre ela. Sabe-se que ela foi construída sob a planificação em “U”, com 3 tanques identificados e um último, de pequenas dimensões, parcialmente recuperado. A sua capacidade instalada estava em torno de 22,8 m3. Ela terá sido abandonada no século IV d.C. 

A oficina B (3), identificada na mesma intervenção de emergência, possuía dimensões menores. Ela também havia sido planeada em “U” e a sua capacidade instalada, com os seus 3 tanques grandes e 1 pequeno, está estimada em 13,8 m3. 

Da oficina C (4) obteve-se apenas uma parede perimetral e um único tanque, posteriormente subdividido em dois menores. A sua capacidade instalada seria de 6,2 m3. 

Finalmente, a oficina D (5) conta com 3 tanques, destruídos por obras posteriores de construção da rua. Como esses tanques estão em uma cota mais baixa que as demais, especula-se que talvez essa oficina integrasse um complexo que se estendesse na direção do mar (Tavares da Silva, Coelho-Soares, 2004, 2006). 

Figura 14: Sines: oficinas A e B (3) (Fabião, 2018e). 

Figura 14a: Sines: oficina C (4) (Fabião, 2018g). 

§ 12 Ilha do Pessegueiro D14 e P16 (Porto Covo):

A ilha possui registo de ocupação contínua desde a Idade do Ferro até a Antiguidade Tardia. Durante o século I d.C. foi construída toda uma estrutura de armazéns, habitações e oficinas, indicando que o local teria sido convertido em um entreposto comercial. 

Esse espaço sofreu uma remodelação no século II d.C. e, por fim, nos séculos III – IV converteu-se num centro especializado na exploração de recursos marinhos, com a construção de duas oficinas: D14 e P16 e estruturas termais. 

Foram escavados vários compartimentos interpretados como armazéns, adjacentes às fábricas D14 e P16 (Tavares da Silva e Soares, 1993, 136-141). Nesses espaços seriam armazenadas as ânforas vazias e/ou cheias prontas a ser embarcadas. 

A oficina D14 foi planeada em “U” e os seus tanques foram escavados em substrato rochoso e recobertos por signinum. A sua capacidade instalada está estimada em 36,63 m3. 

A oficina P16 possui plano em “T”, e um total de 10 tanques de dimensões variáveis. Elas também foram escavadas no substrato rochoso (a 2m de profundidade) e recobertas de signinum. A sua capacidade instalada está estimada em 41,4 m3. Possivelmente havia uma segunda oficina em anexo à essa, uma vez que foi detetado signinum nos escombros abandonados situados a norte de P16. 

Vestígios de recursos marinhos nas duas oficinas incluem muraenidae, sparidae, gadidae, mugilidae e labridae (Beja, 1993). Essas oficinas teriam estado em atividade entre os séculos III – V d.C. 

Figura 15: Ilha do Pessegueiro D14 e P16 (Fabião, 2018h). 

Figura 15a: Oficina D14 (Fabião, 2018h) 

Figura 15b: Oficina P16 (Fabião, 2018i). 

II. 1. 4. Grande Área do Litoral Algarvio

O litoral meridional algarvio estende-se por cerca de 150 km. Muitos dos complexos identificados no Algarve possuem cetárias pequenas, médias e grandes em produção simultânea, sugerindo que suas oficinas fossem especializadas. A maior parte dessas oficinas estabeleceu-se entre os séculos I e II e foram abandonadas de modo progressivo pelos séculos IV – VI tendo o seu número sido revisto por Medeiros (2014 – 2015). 

Atualmente estão identificados e/ou propostos 37 sítios, somando uma capacidade instalada de 601,20 m3. 

Tal valor deriva do cálculo a partir de tanques de apenas 11 centros em condições de análise: Boca do Rio, Martinhal, Senhora da Luz, Monte Molião, Rua Silva Lopes (Lagos), Vau, Aveiros, Loulé Velho, Doca de Olhão, Quinta de Marim e Balsa (Bombico, 2017: 122). 

De resto, apenas 25 sítios podem ser confirmados efetivamente como oficinas de preparados de peixe. 

Figura 16: Centros oleiros e sítios com cetárias na costa algarvia. A numeração dos centros é mantida para a secção descritiva que vem a seguir. (Viegas, 2011, fig.63); apud Bombico, 2012: 123. 

§ 13 Conjunto de Cetárias do Concelho de Vila do Bispo (Sagres):

A oficina mais ocidental do Algarve situa-se na Praia do Beliche (1). Trata-se apenas de vestígios de um tanque (Gomes et al., 1987: 67). Em seguida, a 1,5 km de Sagres, situa-se a nordeste de Sagres num dos ilhéus da Baleeira (2), uma estrutura com restos de opus signinum em possíveis cetárias (Gomes et al., 1987: 67). 

Na Praia de Salema (3) parece ter existido um complexo de oficinas (Veiga, 1910: 211), cujos vestígios limitam-se a fundos de tanques de salga. Em Areias, Budens (3) há também vestígios de 4 tanques recobertos por opus signinum, estando dois deles, os maiores, conectados a uma canalização que integrava um alicerce (Santos, 1971: 80). Sugere-se que esse complexo estivesse ligado à unidade de produção da Boca do Rio (4). 

Em Boca do Rio está situado o maior centro de produção, de preparados do Algarve. O centro desenvolveu-se no estuário do Arade, com uma estrutura inspirada nas villae: uma área habitacional situada na orla do mar, com características da domus romana, com obras de arte, um balneário e o campus servilis; oficinas com cetárias estavam nas imediações dessa área, num total de 3 oficinas e 12 tanques. 

Burgal (5) é a última praia do concelho de Vila do Bispo a apresentar cetárias. Entretanto, sabe-se muito pouco sobre a estrutura de sua oficina. Estima-se que ela tenha operado entre finais do século IV e início do século V, em razão de moedas recolhidas no sítio (Edmonson, 1987: 255). 

Figura 17: Complexo da Boca do Rio (Fabião, 2017c). 

Figura 17a: Mapa geral da área arqueológica da Boca do Rio com as zonas onde Francisco Alves escavou as cetárias em 1982 (segundo Bernardes, 2007); apud, Medeiros, 2014-2015, fig.8. 

§ 14 Conjunto de Cetárias de Lagos:

Na área da Praia da Senhora da Luz (6) há vestígios de um grande complexo, comparável ao da Boca do Rio. Mosaicos, balneários e 16 tanques (12 dos quais intactos), divididos em 3 oficinas. Esse complexo teria funcionado entre os séculos III e IV (Parreira, 1997: 244). 

No centro histórico de Lagos (7) há 3 zonas com cetárias diagnosticadas: ruas Silva Lopes (15 tanques em 3 núcleos); 25 de Abril (2 núcleos: um com 5 e outro com 4 cetárias); e Castelo dos Governadores (2 núcleos: um com 3 e outro com 5 cetárias). Ramos (2008: 91) sugere que ali havia um grande centro processador de recursos marinhos. Esse conjunto teria sido abandonado entre o final do século IV e início do V. 

Na baía de Lagos encontra-se a colina de Monte Molião (8), uma área de ocupação contínua desde o século IV a.C. Ali foram diagnosticadas duas cetárias datando dos séculos I e II (Bargão, 2008, 181). 

Figura 18: Planta das cetárias escavadas nos anos 1980 na estação arqueológica romana da Senhora da Luz (segundo Parreira, 1997). Com indicação de cetárias (1-16) e complexos de salga (A-D); apud, Medeiros, 2014-2015, figs.9-10. 

Figura 18a: Localização das cetárias do centro histórico de Lagos (B3A – Rua Silva Lopes; B3B – Rua 25 de Abril; B3C – Rua Castelo dos Governadores); apud, Medeiros, 2014-2015, fig.13. 

Figura 18b: Planta das cetárias do Monte Molião, Lagos (segundo BARGÃO, 2008). FIG 12 – Pormenor da construção de uma das cetárias do Monte Molião, Lagos apud, Medeiros, 2014- 2015, fig.11. 

§ 15 Conjunto de Cetárias de Portimão:

Em Vau (Alvor) (9), a oeste de Arade, onde se julga estar a cidade de Ipses, foram encontrados 15 tanques de salga. Esses tanques estariam dispostos em dois planos, o que Edmonson (1990: 142) interpreta como indício de que estivessem integrados a um complexo maior, também similar ao modelo de villa. Em Portimões (10), entre o Forte de Santa Catarina e o Convento de São Francisco, próximo à foz do Arade, pela margem direita, foi encontrada uma bateria de 15 tanques de salga, revestidos de opus signignum. Segundo Lagóstena Barrios (2001: 77) o complexo funcionou entre os séculos I e IV. 

Em Baralha (11) sítio arqueológico de 16 km2 interpretado como uma villa, existem muros decorados com estuque pintado e 2 tanques revestidos com signinum (Gomes, 2005). 

Figura 19: Conjunto de cetárias do Vau, segundo desenho de Estácio da Veiga (adaptado de Soares et al., 2007); apud Medeiros, 2014-2015, fig.26. 

Figura 19a: Estabelecimento de salga de Portimões, segundo Estácio da Veiga (VEIGA, 1910); apud Medeiros, 2014-2015, fig.26. 

§ 16 Conjunto de Cetárias de Lagoa:

Ferragudo (12) é um sítio localizado numa aldeia piscatória romana ou pré-romana. Na praia da Angrinha, junto ao castelo de Ferragudo, foi encontrada uma oficina de preparados de peixe. Sabe-se que a estrutura possui 3 tanques quadrangulares de 1m2 e forradas com uma argamassa grosseira de pedras roladas (Santos, 1971: 35). 

§ 17 Conjunto de Cetárias de Silves:

Na Praia de Armação da Pera (13), a cerca de 12 km a leste do rio Arade, encontrou-se vestígios de uma oficina de grandes dimensões (Santos, 1971: 144). Sabe-se que 3 de seus tanques ainda eram visíveis aquando da sua publicação, embora as demais estruturas já não o fossem. Segundo Fabião (1994) essa estrutura estaria conectada às de Portus Hannibalis. 

§ 18 Conjunto de Cetárias de Albufeira25:

Na Praia dos Aveiros foi detectado um tanque, escavado em solo calco-arenítico e danificado pela erosão (Paulo, 2011: 513). Na Praia dos Pescadores, próximo ao Largo do Cais Herculano, foi localizada uma possível estrutura de oficina de transformação de peixe (Paulo, 2011: 510). A Praia de Santa Eulália também aparentemente possuiu estruturas do mesmo tipo, estando esses tanques datados dos séculos III e IV. 

25 Esse conjunto não está descrito pelo mapa apresentado por Viegas, 2011, fig.63 (apud Bombico, 2012: 123).  

§ 19 Conjunto de Cetárias de Loulé:

Cerro de Vila (14) é um dos sítios arqueológicos mais conhecidos e estudados no litoral do Algarve. O seu complexo explorava recursos agrícolas e marítimos em uma estrutura análoga ao modelo de villa romana. Assim, ali se encontram edifícios decorados com arte, balneários, além de uma barragem, um porto, um núcleo “industrial” e uma necrópole. Em seu “núcleo industrial” Teichner (2004: 206) identifica 4 oficinas de transformação de moluscos bivalves e gastrópodes (E, H, I , J). As oficinas E, H, I estariam ocupadas com a produção de conservas alimentares, enquanto a última (J) processava pigmentos de púrpura (murex bandaris) para tecidos. 

Em Quarteira (15) teria existido uma oficina em uma área ocupada por uma povoação romana que foi completamente arrasada. Apesar de haver poucos vestígios dos tanques de salgas, Fabião (1994) propõe a sua datação para o século I a.C. Tão antiga quanto essa estrutura seria a unidade de produção encontrada um pouco mais a leste, em Loulé Velho (16). O sítio é comparável a Cerro da Vila em dimensões e luxo, tendo sido ocupado entre os séculos I a.C e VI d.C. Dado que o complexo estava situado nas proximidades de solo fértil, especula-se que também em Loulé Velho se articulava a exploração de recursos marinhos e agrícolas. Fabião (1994) propõe que os centros de Loulé Velho e Quarteira estivessem conectados a uma estrutura industrial comum. 

Em 1985, uma intervenção de emergência em Quinta do Lago (17) revelou um complexo de cetárias de pequenas dimensões, organizado em duas oficinas; uma contando com 5 tanques escavados na rocha, mais antiga (século I d.C.); outra, construída nas imediações (da qual restam somente 3 cetárias em mau estado de conservação) e abandonada progressivamente a partir do século III. Esse pequeno centro estava situado entre dois pequenos estuários e teria funcionado entre os séculos I e V (Arruda, 1986). 

Figura 20: Planta das diferentes Unidades Arquitetónicas identificadas no Cerro da Vila, com indicação das fábricas E, H, I, J e L (adaptado de Teichner, 2004); apud Medeiros, 2014-2015, fig.30. 

§ 20 Conjunto de Cetárias de Faro:

Na zona da baixa de Faro (18) foram encontradas 3 cetárias, destruídas pela construção civil na área da Avenida da República e a Travessa da Madalena (Rosa, 1984: 152). 

§ 21 Conjunto de Cetárias de Olhão:

Na doca de Olhão (19) a obra do porto de abrigo, junto à antiga fábrica Fialho destruiu duas cetárias. Foi constatado que o grupo original contava com 7 ou 8 cetárias (Edmonson, 1987: 260). 

A Quinta de Marim (20) é um sítio polémico, com múltiplas interpretações para a sua classificação. O povoamento possui três núcleos, estabelecidos ao longo de um paleo-estuário: área portuária, villa e fábrica de salga. O complexo produtor de preparados de peixe e processamento de púrpura, ao sul das ruínas da villa, pode ter-se desenvolvido em articulação com as atividades portuárias e agrícolas. 

São 6 cetárias, orientadas em duas fileiras separadas por um corredor, além de um forno de cal. As cetárias foram construídas no século II e abandonadas no século III, servindo de lixeira até o último quartel do século IV (Medeiros, 2014-2015: 132), embora Edmonson proponha que o seu abandono tenha ocorrido no século V (1987: 260). 

Figura 21: Planta e perfis esquemáticos das cetárias descobertas na doca de Olhão (segundo Iría, 1950); apud Medeiros, 2014-2015, fig.31. 

Figura 21a: Planta das cetárias e armazéns da Quinta de Marim, em Olhão (adaptado de Silva et al., 1992); apud Medeiros, 2014- 2015, fig.32. 

§ 22 Conjunto de Cetárias de Tavira:

Próximo do cais de Balsa, na Praia de Pedras d’El Rei (21) há uma referência a uma villa onde existiria um forno e cetárias (Viegas, 2009). Além disso, dentro do território de Balsa (22) há duas oficinas identificadas. Uma na Torre d’Aires e outra junto à foz da Ribeira das Antas, acompanhando o paredão do cais, na margem esquerda e com parte de suas cetárias submersas (Medeiros, 2014-2015:134). 

Figura 22: Planta da fábrica de Torre d’Aires em 1977 (segundo Silva, 2007); apud Medeiros, 2014-2015, fig.32. 

§ 23 Conjunto de Cetárias de Vila Real de Santo António:

Talvez os vestígios encontrados na Quinta do Muro (23) e em Cacela (24) integrassem o mesmo complexo produtor. Em Cacela Velha foram encontrados 3 tanques de salga mal conservados e recobertos de signinum. A erosão causou o desaparecimento desses tanques, avistados no século XIX e desaparecidos no século XX. Não há informações capazes de confirmar os achados de Quinta do Muro; apenas relatórios antigos e sem referências precisas de sua localização. 

Figura 23: Quinta do Muro e Cacela (Fabião, 2017d). 

§24 Conjunto de Cetárias de São Bartolomeu de Castro Marim26:

Em 1965 um complexo “industrial” foi descoberto em Praia Verde, em consequência da ação de marés vivas. Fabião (2008) comenta que um forno e as cetárias ali existentes já eram conhecidas há um século. O sítio teria sido ocupado entre os séculos III e IV e reocupado posteriormente, na Idade Média. 

26 Esse conjunto não está descrito pelo mapa apresentado por Viegas, 2011, fig.63 (apud Bombico, 2012: 123).  

CAPÍTULO III – PERSPETIVAS DE UMA DINÂMICA ECONÓMICA

Desde o século XIX a academia ocupa-se de compreender o modelo económico antigo. Duas grandes correntes formaram-se em decorrência desse debate. A chamada corrente “Clássica” era influenciada pelo modelo económico proposto por Adam Smith (séc. XVIII) e estabelecia que toda e qualquer atividade económica desenvolvida em época anterior ao estabelecimento do mercantilismo moderno era classificada como “não-capitalista” (Carreras Monfort, 2000: 22). 

A segunda corrente, dita “Histórica” era fundamentada por diversos teóricos alemães do século XIX e argumentava que variáveis geográficas e cronológicas tinham de ser levadas em consideração. Propunha-se ainda uma diferenciação entre “economia doméstica” e “economia mundial” (Carreras Monfort, 2000: 23). 

O debate prosseguiu pelo século XX, agora influenciado pelas obras de Sombart e Weber, que discutiam o papel desempenhado pela relação entre campo e cidade na economia antiga (Bruhns, 1985: 259). 

Em linhas gerais, Sombart estabeleceu a premissa de que as cidades eram centros consumidores por excelência. A cidade, enquanto centro de consumo e comércio, apresentava-se como antítese do campo, que era compelido a sustentar a população urbana mediante tributação sobre a sua produção, estimulando a criação sistemática de excedentes (Bruhns, 1985: 259). 

Weber tentou dialogar com a dicotomia entre as abordagens “Clássica” e “Histórica”. O seu modelo propõe que havia um modelo particular de economia de mercado no mundo antigo, pontual a certos períodos e regiões. Todavia, esse modelo antigo não deveria ser entendido como um espécie de “pré-capitalismo contemporâneo. Assim, a economia romana seria “não-capitalista” no sentido de não possuir estruturas sociais, políticas e económicas bem desenvolvidas” (Carreras Monfort, 2000: 24). 

O conflito entre as teorias de Sombart e Weber são mais claramente percebidas no tocante ao suposto antagonismo entre campo e cidade. As cidades também eram centros de produção, embora em menor escala. Além disso, a demanda criada pela cidade poderia ser suprida pelo campo em comum-acordo (Bruhns, 1985: 262). 

Ao longo do século XX duas grandes correntes desenvolverão essas duas abordagens teóricas, acrescentando ao debate a definição do conceito de mercado e o papel da agricultura e comércio na sociedade romana. 

Rostovtzeff, fundador da corrente dita “Moderna”, propôs uma perceção evolucionista da economia romana. Segundo esse abordagem, a economia romana experimentava os primeiros passos rumo à uma economia capitalista de facto. O mercado seria então perfeitamente abrangente e interdependente, tendo o comércio de longa-distância recebido financiamento de elites privadas compostas por uma espécie de “classe média” de comerciantes e artesãos. O comércio anfórico e de terra sigillata seriam amostras da vitalidade dessa iniciativa privada (Rostovtzeff, 1926). 

Finley, fundador da corrente dita “Primitiva” tenta aprofundar a teoria weberiana e concorda com a definição da cidade como um centro de consumo. Todavia inova ao propor a existência não de um mercado único, mas sim uma rede de pequenos mercados locais e autónomos. O comércio de longo-curso era entendido então como algo dispendioso demais e inviabilizado também pelo baixo poder aquisitivo da plebe urbana (Finley, 1973). 

A escola gramsciana italiana tentou promover um diálogo com as premissas dessas duas correntes. Uma análise do modo de produção escravo derruba a visão primitivista que trata a economia pré-capitalista como “irracional”. O império romano apresenta uma clara evolução do modelo de produção: o formato familiar, com o predomínio de pequenas estruturas produtivas agrícolas artesanais dá lugar a um sistema largamente esclavagista conforme cresce o império. Essa economia também estava suscetível a aplicação de conceitos operativos, como “crescimento económico” e “crise” (Molina Vidal, 1997: 60). 

Recentemente, autores de uma historiografia maioritariamente anglófona aperfeiçoaram a teoria de Finley. O debate foi atualizado pela abordagem de questões referentes aos mecanismos de distribuição e reciprocidade fortemente controlados pelo Estado. Autores como Hopkins, Nicolet e Duncan-Jones combinam elementos das correntes “Moderna” e “Primitivista” e estabelecem que a economia romana era uma economia de mercado , embora mais simples do que a contraparte moderna. Esse debate estabeleceu consensualmente que a economia romana era regional e organizada em micro-circuitos locais (De Blois, Pleket, Rich, 2002: xii). 

Compreende-se que a economia de mercado romana possuía mecanismos de controlo de preços pelo Estado. Indícios desse controlo podem ser identificados através do apelo de Tibério ao senado para que os preços do mercado fossem controlados (Carreras Monfort 2000: 38); ou através do Édito de Domiciano, que obrigou as províncias a arrancarem a metade das suas vinhas e comprometeu a Itália a não plantar mais nenhuma. Tratam-se de medidas claramente protecionistas (Pereira Menaut, 1987). 

Finley (1973) propõe que a economia romana seria totalmente baseada num modelo rural, centrada em pequenos centros metropolitanos e compartimentada em regiões. Segundo esse paradigma, o campo provia as necessidades da cidade mais próxima. O circuito comercial seria, portanto, restrito às necessidades regionais. Como então explicar a realidade das exportações? 

Segundo uma abordagem primitivista, os proprietários de terras não concebiam o lucro como o principal motivador dos seus empreendimentos. Desse modo, as suas vendas não observariam flutuações de preços de mercado na esfera regional, nem havia a preocupação de maximizar o lucro nos esforços de longo-prazo. 

A visão primitivista estabelecia ainda que um empreendimento como o transporte e o comércio de longa-distância tenderia a ser inequivocamente atribuído à iniciativa estatal, visando a movimentação de bens das províncias para a capital imperial. Logo, a articulação do Estado com a sociedade ocorria através da mediação de mecanismos como a tributação e serviços públicos. Essa taxação pública podia ser realizada em dinheiro ou espécie, através das requisições feitas para o aprovisionamento regular da cidade de Roma (annona civilis) ou de guarnições e frota naval (annona militaris). 

Por outro lado, sabe-se que existiam empreendedores privados, seguramente. Vinho e preparados de peixe eram essencialmente cargas privadas, ao passo que cereais, azeite e o vinho africano de finais do século III, IV e V, seriam cargas públicas. 

O Estado então agia como agente redistribuidor de bens e alimentos, seja para os cidadãos de Roma (annona civilis) ou para o abastecimento de tropas estacionadas em fronteiras e limens (annona militaris). Embora a atividade do Preaefectus Annonae só esteja bem documentada a partir do séc. III, o cargo foi estabelecido por Augusto entre os anos 8 – 14 d.C., o que justifica a grande concentração de ânforas olearias da Bética em Roma nos séculos I, II e III (Carreras Monfort, 2000: 217). 

III. 1. A “Conectividade” Regional e o Comércio de Longa-Distância

O modelo tradicional de Finley não nega a conexão entre núcleos consumidores/comerciais e regiões e povoações vizinhas. Normalmente, no ocidente do império, os maiores centros urbanos provinciais dificilmente ultrapassavam a média de 10-20 mil habitantes. Sabe-se que o comércio local era praticado de forma livre e organizado em deambulatores, ou seja, tabernae, nundinae e macella (Quaresma, 2003 :19). 

A corrente primitivista admite que naqueles centros haveria um comércio voltado para suprir a demanda local e também obter lucro a longo-prazo. Por outro lado, os centros populacionais menores estariam restritos à obtenção do sustento no seu próprio entorno. 

A coesão do império era promovida pela administração, mas não se pode afirmar a existência de uma integração económica entre as províncias, segundo a proposta defendida por Finley de “mercados inter-dependentes”, uma vez que não há comprovação de um fluxo regular de bens de consumo e de luxo entre as províncias (De Blois, Pleket, Rich, 2002: xiii). 

No lugar desse modelo, propõe-se a existência de economias “micro-regionais”, ou seja, economias locais com alguma abertura pontual de “conectividade” (Horden, Purcel: 2000). Segundo esse “modelo”, as micro-economias possuem ritmo e estrutura próprias e estão, a priori, voltadas para o atendimento de necessidades locais. Apenas em momentos específicos esses mercados encontram uma demanda maior para os seus bens, e daí ocorreria uma conexão entre as respetivas regiões. 

Pode-se afirmar, como uma regra geral, que o comércio inter-regional não era uma prioridade ou que constituiria mesmo numa atividade relevante. O comércio inter-regional seria consequência da intervenção administrativa romana, voltada para o abastecimento estratégico, mas também articulado com alguma iniciativa privada. Uma exceção óbvia a essa regra geral são os grandes centros urbanos e comerciais orientais, como, por exemplo, Tiro, Biblos e Hierápolis. Aqueles grandes produtores de têxteis de luxo não precisavam de incentivos estatais para produzirem em vastíssima quantidade, nem para escoarem a sua produção por todo o império. 

Todavia, a arqueologia demonstra que as províncias experimentavam realidades distintas. A Lusitânia e a Bética, tal como a Síria, partilhavam de uma cultura romana imperial comum. Aquelas províncias possuíam toda uma estrutura comum de edifícios públicos, estradas pavimentadas, altares para o culto imperial e a cultura greco-romana era, grosso modo, valorizada pelas elites provinciais. Mesmo assim, as suas realidades de conectividade regional constituem universos diferentes. 

Ainda não existem fontes suficientes para uma análise quantitativa e qualitativa da importância do comércio regional no cenário da atividade económica de longa-distância. Áreas como a Bética-Roma-Gália possuíam um comércio regional regular. A questão do aprovisionamento das legiões estacionadas no limens germanicus demandava o fluxo constante de alimentos e de bens. A demanda externa favoreceu o desenvolvimento de toda uma estrutura logística para facilitar os transportes de longa-distância nesse circuito de “conectividade”. 

De faco, o sul da Hispânia tornou-se num grande polo de desenvolvimento económico ao combinar características de sistemas de conectividade comercial local, regional e de longa-distância. Neste sentido, o caso da Bética é emblemático para o ocidente do império, posto que o seu desenvolvimento estava diretamente vinculado ao abastecimento anonário de Roma e das forças armadas. 

A prosperidade dessas “áreas de alimentação” (Hopkins: 1995-1996: 58, 60, 63; Pleket, 1998: 61) de Roma também deriva do facto de que o transporte de carga anonária era um serviço subvencionado pelo Estado. Roma e o seu poderio militar eram grandes consumidores dos bens e alimentos enviados pelos governadores provinciais. Porém, comerciantes livres também eram atraídos para a cidade e navios anonários também podiam transportar esses passageiros independentes e/ou a sua carga. 

Há referências epigráficas de que domini privados também poderiam assumir a tarefa de distribuição da sua própria produção (Digesta VIII, 4. 13), mas a estrutura logística de produção e distribuição por todo o império exigia a coparticipação de

negotiatores ou navicularii que podiam, ou não, também ser produtores. Daí assume-se que corporações controlavam, hegemónicas, a função de distribuição dos produtos lançados nos circuitos comerciais de longa-distância (Garcia Vargas, 2006: 543ff; Bernardes, 2015: 61). 

Aparentemente, as ânforas lusitanas alcançam o porto sírio de Beirute entre os séculos II e IV. Nos séculos III e IV, tal como as béticas, elas possuem uma presença menor, havendo, contudo, algum destaque para as ânforas de tipo Keay XVI (Tab. 3). Segue-se, aparentemente, o processo de declínio e desaparecimento das ânforas lusitanas daquele mercado, no século V. 

Digo “aparentemente”, porque há uma falha na argumentação dominante entre autores anglófonos no tocante à incapacidade de distinção entre ânforas produzidas na Bética e as lusitanas (Quaresma, 2012: 294). De facto, as ânforas lusitanas “aparentemente” desaparecem do mercado mediterrâneo oriental a partir de meados do século III, embora uma produção de origem bética continue a ser diagnosticada até o início do século V (Reynolds, 2010: 42). 

Bernardes (2015: 61) sugere que a atividade itinerante dos mercatores béticos pode estar relacionada com o fenómeno de dispersão de ânforas béticas (tipo Keay XVI) em grande quantidade nos centros produtores lusitanos de Troia (Figs. 12 – 12ª), Ilha do Pessegueiro (Fig. 15) e Quinta de Marim (Figs. 21 – 21ª). Seria correto então propor que as ânforas béticas (Beltrán II e Keay XVI) poderiam levar também os preparados de peixe lusitanos. 

De facto, o naufrágio de Cabrera III (257 d.C.) possui ânforas piscícolas béticas com a inscrição IVNIORVN, que também pode ser atestada em Quinta de Marim (Silva et. al., 1992; Bernardes, 2015: 61). Portanto, há uma possibilidade de que parte da produção bética tenha origem na Lusitânia (Mayet, Schmitt, Silva, 1996; Mayet, Schmitt, 1997; Étienne, Mayet, 2002: 104). 

III. 1. 1. Sobre a Logística da Produção Lusitana

Na Lusitânia, a data estimada para o princípio da produção de preparados de peixe é o segundo quartel do século I d.C., tendo as suas primeiras oficinas implantadas nos estuários do Tejo e do Sado. A organização das primeiras unidades de produção orbitava um centro urbano-portuário como sede administrativa (Salacia e Caetobriga no Sado; Olisipo, no Tejo). 

A produção dos preparados de peixe terá ocorrido em dois momentos distintos, com grandezas e estratégias económicas específicas. Num primeiro momento, existiram pequenas unidades produtoras. Essas unidades recorriam a olarias locais para o envase e transporte de sua produção (Tavares da Silva, Coelho-Soares, 1987: 236-237). Posteriormente, com o aumento da produção, foi preciso mover as olarias para o interior dos estuários (Fabião, 2009: 570). 

Embora as grandes áreas dos estuários do Tejo e do Sado produzissem contentores para o envase e transporte da sua produção, essa realidade não se verificava no litoral algarvio, que recorria à importação de ânforas béticas para complementar a logística das suas olarias. Há, portanto, realidades sociais e económicas distintas e modelos distintos de exploração implementados concomitantemente (Fabião, 2009: 570). 

Nesse aspecto, o que se deteta no Algarve é uma realidade distinta, onde não se obteve ainda um grau de exploração satisfatório do seu potencial arqueológico. Muitos dos centros hipotéticos propostos no litoral algarvio (Tab. 2) sugerem que o sul da província teria exercido um papel mais relevante do que aquele que se lhe atribui atualmente. Sabe-se que a grande área do litoral algarvio ganhou maior notoriedade nos séculos III – V, no seguimento do declínio da produção bética. 

Na grande área do litoral algarvio, as numerosas villae que teriam explorado recursos marítimos em pequena escala constituem ainda um trabalho em progresso, carecendo de informações em quantidades capazes de enriquecer o debate. Para agravar o quadro, a erosão costeira destruiu uma porção considerável dos centros produtores do litoral algarvio. 

Há uma questão polémica a respeito da exploração de produtos à base de peixe por centros rurais lusitanos. Um quadro de integração de rotas terrestres e fluviais já foi proposto por Edmonson (1987), sugerindo a existência de um modelo rural de exploração dos recursos marinhos, onde enclaves rurais, inspirados no modelo de produção das villae complementavam a sua produção agrícola com a exploração de recursos marítimos. 

A proposta desse sistema presumia a existência de algum suporte logístico mútuo entre os enclaves rurais e os centros urbanos. Fabião (1993-1994, 1994) refuta essa hipótese enquanto não se conhecer plenamente toda a logística terrestre e marítima da província. 

Contudo, Blot (2003) demonstrou a existência de pequenos centros portuários lusitanos, como Cerro de Vila (Loulé), que podem proporcionar pontos de comunicação entre o interior e o litoral. Porém, a existência (ainda que pontual) de centros produtores de preparados de peixe inspirados no modelo de exploração rural das villae não equivale a determinar o seu impacto e relevância na economia da província. Entretanto, a proposta de Edmonson pode ser revisitada à luz dos novos dados arqueológicos disponíveis e retornar à pauta académica para o debate. 

Atualmente, a realidade lusitana informa pouco a respeito da logística da produção lusitana, isto é: o perfil da mão-de-obra empregada, da organização do trabalho, ou mesmo da periodicidade e ritmos da pesca e navegações, que se supõem sazonais (Fabião, 2009b: 559). 

Blázquez observa que o sistema de construção de depósitos das oficinas da Bética assemelha-se ao modelo adotado em Lixus, no litoral marroquino (1978: 187). Entretanto, há paralelos possíveis de serem explorados entre a Bética e o modelo adotado no extremo sul da Lusitânia. 

Na Bética, sabe-se que os centros produtores situados em villae eram servidos por uma rede de navegação fluvial que escoava a importante produção agrícola. Bernal Casasola (2009) observa que na Bética os centros urbanos recebiam suporte logístico de núcleos semi-urbanos periféricos. Villae similares a Cerro de Vila, com áreas residenciais decoradas artisticamente, e contando com embarcadouros, termas, necrópoles e áreas “industriais” servidas por aquedutos estão presentes na costa mediterrânea de Málaga (Manilva, Bem Almádena, Fuengirola, Torrox), na parte oriental da província. Na parte ocidental o quadro repete-se em Getares (Algeciras), Trafalgar (Barbate) e Chipiona; que podiam exercer apoio logístico aos seus respetivos centros urbanos de Gades, Onoba e Balsa. 

Blázquez (1978: 157) descreve como a administração romana criara ali uma rede de estações portuárias no Guadalquivir, suprindo villae, olarias (fabricantes de ânforas) e as cidades de Brenes (porto próximo a Illipa Magna), Tociña (Portus Oduciensis), Guadajoz (Portus Carmonensis) e Palure. 

O volume de ânforas dispersas na beira do Guadalquivir sugere que existiam ainda muitos portos secundários na área. Além disso, as olarias eram servidas de caminhos terrestres diversos, que sempre convergiam para o rio. Blásquez observa que a rica variedade de marcas de produtores nas ânforas de azeite aponta para uma independência entre os centros oleiros e os proprietários rurais (Blásquez, 1978: 158). 

Étienne e Le Roux sugerem que o grande número de nomes (posição beta dos tituli picti) diferentes identificando as ânforas de azeite bético implicam num grande número de distribuidores e, consequentemente, apontaria para um modelo de exploração familiar. Nesse caso, os nomes indicariam proprietários rurais para a execução das cobranças aduaneiras de taxação (1972: 622ff.). 

Por fim, Blásquez (1978: 158) observa um padrão de integração de vias fluviais e terrestres, conectando os rios Genil e Guadalquivir à Via Augusta, formando um corredor para Hispalis e conectando os três conventus. Ponsich (1974: 280ff.) já havia proposto que a economia agrária regional e as relações entre os conventes de Hispalis, Astigi e Corduba dependiam das rotas fluviais da província. 

Além dos possíveis paralelos existentes na logística do escoamento da produção e da comunicação entre as suas regiões, a Bética e a Lusitânia também partilham de semelhanças na organização e arquitetura das oficinas de transformação de peixe. Ponsich (1971: 238, 258ff., 282ff., 287, 290ff.) defende que a Bética exercia uma influência económica sobre o litoral atlântico marroquino e o litoral sul algarvio. 

Haveria então uma continuidade ou restauração do chamado “Círculo del Estrecho” durante o período imperial romano. O autor demonstrou que as elites mauritanas favoreciam os produtos béticos, como a terra sigillata, o azeite e o garum gaditano. Blásquez afirma que todas as oficinas do Estreito, sejam béticas ou mauritanas, estavam alinhadas numa grande corporação controlada por gaditanos (1978: 177-178). 

Terá então existido uma societas (no sentido de organização empresarial totalmente privada) bética-mauritana para a exploração de recursos, incluindo o garum? Haveria uma centralização dos produtos nas mãos de socii (societates)? Como essa estrutura afetaria a logística da produção lusitana? 

A tendência geral para a redução das dimensões dos tanques do Baixo Império na Hispânia, bem como a gradual preferência por peixes de menores dimensões, implicam ainda na transformação do modelo socioeconómico da exploração dos preparados de peixe, desde a sua captura ao processamento dos produtos. 

Ainda não se chegou a um consenso acerca do fenómeno de estreitamento dos bordos de alguns tipos anfóricos tardios (Alm. 51c e 51 a-b) a partir do século III. Assume-se, em linhas gerais, que este fenómeno possa ter como motivador principal a tipologia predominante do produto envasado (Garcia Vargas, 2006: 537 – 539; Garcia Vargas, Bernal Casasola, 2009:143 -144). 

III. 2. Transformações Económicas e a Produção dos Preparados de Peixe Lusitanos

Infelizmente, dispomos de poucos dados arqueológicos acerca da primeira fase da produção dos preparados de peixe na Lusitânia, uma vez que, as estratigrafias pré-Cláudias (fases I e II) são, geralmente, “palimpsestadas” pela segunda fase. O período denominado Pax Romana, de 27 a.C. a 180 d.C., foi particularmente favorável ao desenvolvimento económico e ao reforço da romanização das províncias. Sabe-se que entre os séculos I e II o hallec, produto mais líquido, tende a substituir o garum, mais encorpado, em popularidade. Uma consequência da vulgarização do consumo dos preparados de peixe pelo império (Bernardes, 2015: 57). 

Segundo Duncan-Jones (1974) o período que compreende os séculos I e II teria testemunhado um forte crescimento do comércio inter-regional, estimulado primariamente pela intervenção estatal (taxações). Hopkins (1980) observa como os impostos em dinheiro teriam possibilitado a criação de redes comerciais complexas até o ano 200 d.C., uma vez que as províncias taxadas eram obrigadas a pagar as suas taxas devidas em moeda e espécie, sobretudo cereais e azeite (annona). 

Entretanto, a conjuntura da economia do século II são marcadas por elementos sinalizadores de crise, como a desvalorização monetária iniciada em ca. 100 d.C., e a quebra demográfica provocada pela chamada “Praga de Antonino” (ca. 165-180 d.C.) (Quaresma, 2012). 

Uma análise estratigráfica demonstra que produção de preparados de peixe diminuiu no final do século II. Em meados do século II há indícios de uma recessão em curso, que afetará a produção dos preparados de peixe. No vale do Gadalquivir ocorre nessa época a retração de áreas portuárias e artesanais. Em Hispalis, esses espaços são convertidos em núcleos habitacionais (Garcia Vargas, 2007: 353). 

Na Lusitania, na grande área da Costa Alentejana, a unidade de produção da Ilha do Pessegueiro apresenta na sua estratigrafia (cortes A, C e D’) indícios de que a crise já surtia efeito no terceiro quartel do século II, mantendo-se letárgico até meados do século III (Tavares da Silva, Soares, 1993). Em Pinheiro, é possível que as incursões dos Mauri tenham atuado como agravante para o declínio da produção (Mayet, Silva, 1998). 

Aparentemente, o comércio fluiu sem complicações até ca. 250 d.C., quando então se deteta uma fase de recessão que duraria até ca. 300 d.C. Entre 270-275 d.C. seguem-se alterações no sistema monetário. O antoninianus substitui o denarius como moeda forte (de referência) e a sua sobre-emissão provoca um rápido processo de desvalorização (Jones, 1953: 196). Essa inflação pode ser percebida através da documentação sobre a subida dos preços da terra e do trigo (Tab. 4). Os preços da terra parecem estáveis até o século III. Por outro lado, se em 260 d.C. os preços subiram 4,5% em relação aos praticados nos tempos de Augusto, entre 260 e 301 d.C. eles disparam cerca de 100 vezes no Egito. Entre 301 e ca.338 d.C. eles sobem ainda 5 mil vezes, num claro indicativo de hiperinflação. 

A segunda metade do século III foi marcada por uma inflação aparentemente provocada pela alta do preço do trigo. Nesse contexto de crise económica, Aureliano decreta (S.H.A., Aurelianus, 35.2; 48.1) a distribuição gratuita de 5 libras de carne de porco e vinho barato para os cidadãos de Roma (Reynolds, 1995: 107). Por volta do ano 250 d.C. a estrutura da annona sofreu transformações, com a transferência de competências do Praefectus Annonae para os prefeitos pretorianos (Garcia Vargas, 1998: 247). 

Esse quadro de crise tem continuidade ao longo da primeira metade do século IV. Diocleciano lançou uma série de medidas de longo-prazo para superar a crise económica. Sob a Tetrarquia foi promovida uma reorganização das 47 províncias, redefinidas em 100 novas unidades administrativas, renovando a rede viária e a logística comercial (Pieri, 2005: 146). 

O Édito de Preços de Diocleciano, de 301 d.C. visava controlar os valores de mercado e tabelar preços. O Édito inclui os preparados de peixe (liquamen) no capítulo relativo aos olei, juntamente com o mel e o sal (Tab.5). 

Há uma problematização interessante sobre essa temática. Quaresma (2012) questiona sobre a possibilidade de um enquadramento jurídico do liquamen na categoria dos óleos um indício da reformulação anonária. O liquamen terá sido incluído na categoria de bens de distribuição estatal? 

O emprego do termo “liquamen” pelo Édito de Diocleciano é um indicativo da proeminência dos subprodutos de natureza líquida, mais baratos. O liquamen tinha um preço mínimo relativamente baixo, variando entre 12 e 16 denarii, o que o tornava um produto competitivo nos mercados de maior qualidade. O aumento da demanda pode estar relacionado ao aumento da popularidade dos peixes menores, mais baratos (Quaresma, 2012: 276). 

Durante o Baixo Império, observa-se uma tendência na Hispânia no sentido de substituírem as salgas de atum, matéria-prima escassa já no século I, por peixes menores. As informações obtidas a partir de análises laboratoriais fornecem dados imprescindíveis para a compreensão das técnicas de conserva da antiguidade. Na península Ibérica (Garcia Vargas, Bernal Casasola, 2009) indicam que a produção dos preparados de peixe incluía uma vasta gama de produtos, desde o valorizado atum, em pedaços, até as mais simples clupeidae (incluindo a sardinha, a sardinela e a anchova) e as sparidae (incluindo a dourada e o pargo). 

Cabe ressaltar que foram identificados restos de espinhas de sardinhas em diversas ânforas lusitanas provenientes de naufrágios no Mediterrâneo, como em Rendello (Sicília), Catalans (Marselha) e Sud-Lavezzi (Córsega) (Étienne, Mayet, 2002: 202-207). 

De facto, a sardinha é o principal componente dos vestígios analisados nos tanques de salga das oficinas lusitanas, nos contextos romanos dos séculos III – V d.C.: “Casa do Governador” (Figs. 5 – 6), “Rua dos Correeiros” (Fig. 2), “Mandarim Chinês” (Fig. 2), além das oficinas I e II de Troia (Figs. 12 – 12ª), “Travessa do Frei Gaspar” (Fig. 8ª), “Ilha do Pessegueiro” (Fig. 15) e a “Quinta de Marim” (Figs. 21 – 21ª), em Olhão (Tavares da Silva, Soares, 1993; Desse-Berset, Desse, 2000; Assis, Amaro, 2006). 

Segundo Reynolds (2010: 40), é possível que a produção ibérica se tenha voltado para a salga de peixes menores durante a fase final da administração romana, incluindo a Antiguidade Tardia. Para o autor, os grandes peixes em posta, ou mesmo inteiros, consistiriam numa produção exclusiva do Alto Império. Bombico (2017: 131) contesta essa posição argumentando que no Baixo Império ainda se produzem ânforas de bocas largas e corpo troncocónicos (Almagro 50 e Keay XVI e Sado 1 = Keay LXXVIII, no caso da Lusitânia), o que sugere uma continuidade de transporte de peixe inteiro. 

Apesar do Édito de Diocleciano ter sido revogado por Constantino, este deu continuidade à política anterior de contenção de gastos do erário público (Pirei, 2005: 147). Sob o seu principado, aumentou o controlo estatal sobre o mercado e o tráfego comercial. A atividade dos corpora naviculariorum torna-se rei publicae causa. Eles passam a ser mais integrados, mas ainda desfrutam de imunidade, em continuidade com a política de privilégios conferidos pelos Severos (Perea Yébenes, 2003: 85). 

Em 331- 333 d.C. os prefeitos pretorianos passam a controlar a circulação anonária, ao passo que a sua distribuição é delegada ao Praefectus Urbs. A prefeitura anonária também perde a sua autonomia financeira (Perea Yébenes, 2003: 93 – 94).  

No século IV as ânforas béticas e lusitanas do tipo Almagro 50 estão presentes na Itália; as Almagro 51, são encontradas na Sardenha até o século V (Garcia Vargas, 1998: 249). A partir do início do século V a retração do comércio de longa-distância dos preparados de peixe béticos e lusitanos pode ser verificada pelos dados anfóricos em diversos pontos do Mediterrâneo (Reynolds, 2005: 385), tal como verificado no caso de Beirute (Tab. 3). 

Em Arles e Narbonne os preparados de peixe béticos e lusitanos estão presentes em quantidades equivalentes. Contudo, em Hispalis, na própria Bética, os preparados de peixe lusitanos correspondem a cerca de 50% das importações (Reynolds, 2005: 385; Garcia Vargas, 2007; Quaresma, 2012: 295, 394). 

A partir da segunda metade do século V muitos centros produtores de preparados de peixe são encerrados ou drasticamente reduzidos na Lusitânia. Também se detecta um decréscimo significativo na importação de terra sigillata em várias cidades (Quaresma, 2012: 276). Centros urbanos, como Ammaia e Chãos Salgados, e grandes villae, como São Cucufate, encerram a sua ocupação aproximadamente nessa época. 

Possivelmente, o avanço meridional dos suevos durante a década de 420 d.C pode ter exercido uma influência significativa sobre esse fenómeno. O último vicarius hispaniae, Maurocello, foi nomeado em 418 d.C., mas já não há qualquer menção a ele após 420 d.C., o que sugere um enfraquecimento da autoridade imperial na região (Diaz, 1992-1993: 298-300). 

Há alguns indícios arqueológicos (armazéns Sommer) de que a margem esquerda do Tejo ainda produziu ânforas piscícolas em quantidades tímidas até inícios do século VI (Quaresma, 2012: 297). Sabe-se que o complexo da Casa do Governador, que tinha originalmente 17 cetárias manteve-se em funcionamento precário até o final do século V, com apenas 2 tanques funcionais (Filipe, Fabião: 2006-2007). 

Um abandono sistemático de cetárias ocorre em Lisboa entre o final do século V e o início do século VI (Assis, Amaro, 2006), Setúbal, Troia e Quinta de Marim (Desse-Berset, Desse, 2000: 86-91). 

No estuário do Sado, em Comenda, a produção anfórica piscícola foi encerrada no primeiro terço do século VI, havendo ainda algum material escasso na área até a metade do século VI (Trindade, Diogo, 1996: 8). 

A instabilidade regional provocada pelas guerras suevo-visigóticas podem ter contribuído de forma determinante para a interrupção da produção nas grandes áreas dos estuários do Tejo e do Sado. Olisipo foi conquistada pelos suevos em 429 d.C., e pelos visigodos em 440 d.C., seguida por uma rápida troca de mãos entre 455 e 469 d.C., ficando a cidade, finalmente sob o domínio visigodo (Tranoy, 1974: 246; Diaz, 1993-1994). 

Contrariamente, a grande área do Algarve tem a continuação da sua produção atestada até inícios do século VI (Lagos, Travessa Silva Lopes) e, possivelmente, também em Cerro de Vila 27 (Diogo, 2001: 110; Ramos, Almeida, Laço, 2006: 93). 

27 A presença de materiais de século VI ou mesmo VII, estão associados a níveis de circulação posteriores ao abandono, cujos dados não ultrapassam os in do V.  

Oficialmente, estipula-se que a produção dos preparados lusitanos teve fim na primeira metade do século V. Todavia, o Algarve permaneceu produtivo, ainda que sob uma nova reconfiguração comercial e logística, até inícios do século VI (Lagos). 

Em um determinado momento, entre os séculos V e VI, os centros produtores já não se articulavam de modo eficiente com os seus meios de distribuição. A redução da capacidade produtiva provocou o abandono de cetárias e, consequentemente, os centros produtores ainda ativos no início da Antiguidade Tardia sofreram uma queda significativa da sua atividade, tal como se constata tanto em Lagos, na Lusitânia (Ramos, Almeida, Laço, 2006) como em Algeciras, na Bética (Bernal Casasola, 2008). 

O desaparecimento de villae e centros urbanos impactou o mercado consumidor de preparados de peixe, que precisou se reajustar para uma demanda drasticamente menor. O século VI oferece testemunhos literários indiretos da reminiscência de um comércio importador de preparados de peixe. 

Em De observatione ciborum, Anthimus, o médico bizantino da corte do rei Teodorico, proíbe o consumo de liquamen. Na Historia Francorum, o bispo Gregório de Tours atesta a continuidade das importações de liquamen através do porto de Marselha (IV, 43) (Curtis, 1991: 184-185). 

Contudo, o declínio da produção dos preparados de peixe também reflete um importante aspeto cultural, característico da transformação do mundo mediterrâneo num mundo germânico. A salga de peixe e os molhos derivados desse processo tinham por objetivo a conservação do peixe e a substituição do uso do sal na culinária. A tradição germânica conservava o peixe seco ou fumado e utilizava o sal diretamente no preparo dos alimentos. 

Além disso, há uma componente religiosa envolvida no processo de transformação cultural ocorrida na Antiguidade Tardia, de orientação cristã. São Pacómio (séc. IV) e São Jerônimo (séc. V) associam os preparados de peixe à gula, e condenam o seu consumo nos feriados religiosos e outros períodos de abstinência. Por outro lado, o peixe salgado ou seco não sofre essa interdição alimentar (Curtis, 1991: 35, n.29, 136, n.120; Bernardes, 2015: 64). 

Neste sentido é importante ter em mente que desde finais do século II existiu uma guerra intelectual e ideológica entre pensadores do mundo cristão e as chamadas “heresias pagãs”, tais como os cultos a Mitra, Isis e Cibele. Clemente de Alexandria, em suas “Exortações aos Gregos” (II, 20p) estabelece uma antítese moral entre “Grego” e “Cristão” que é prontamente reproduzida pela elite intelectual cristã. 

Essa interdição religiosa contra o liquamen reflete perfeitamente essa aversão cristã ao alegado escandaloso modus vivendi pagão, sistematicamente atacado pela patrística até o final do século V (Gurgel Pereira, 2011: 150, n. 348-349). 

Logo, a transição cultural do mundo mediterrâneo para um mundo germânico (romanizado) e mais intensamente cristão não pode ser reduzida simplesmente a uma traumática conquista militar “bárbara”. 

Há todo um lento processo de transformações comportamentais que incluíam os hábitos gastronómicos e que são variáveis importantes na compreensão da fase final da produção dos preparados de peixe. 

III. 3. (Re-)Organização Urbana e de Centros de Produção

Na Hispânia ocorreu um processo de modificação arquitetónica radical entre o período Clássico e a Antiguidade Tardia. Processos graduais de transformação, combinados com inovações súbitas caracterizam o urbanismo hispânico nessa época. 

Todavia, há ainda pouca informação arqueológica para analisar o processo de nova conceptualização do espaço urbano durante essa transição para o mundo medieval. Em linhas gerais, a concentração populacional da cidade diminui. A desestruturação urbana pode ser notada, mas há diferentes possibilidades para explicá-la. 

Tanto o abandono como a transformação urbanística ocorrem por toda a península. 

Na província da Tarraconensis, Baetulo fora construída no século I a.C., experimentou uma fase de prosperidade comercial, graças à integração às rotas mediterrâneas e à produção vinícola (Comas et al., 1994). Porém, no século II d.C. a cidade já apresenta o abandono de algumas ruas e o colapso do seu sistema de coletores públicos, embora a cidade tenha permanecido habitada até o final do século IV d.C. (Padrós Martí, 1999). 

Se em Baetulo ocorre uma readaptação urbanística, surge uma nova em Emporiae, onde ocorrera, no século II, um processo de reassentamento populacional. Carthago Nova apresenta o abandono de edifícios públicos já no século II (Ramallo Asensio, 2000: 587-591). Tarraco experimentou o abandono de população intramuros, e de uma parte considerável das suas domes, entre os séculos III-IV (Marcias Solé, 2000: 261). 

Embora o fenómeno de abandono ou reconfiguração urbanística possa ser diagnosticado precocemente, ainda no século II, é durante o século IV que esse processo terá maior intensidade. 

Emerita Augusta, a capital lusitana, terá uma ocupação privada dos seus pórticos ao longo da Antiguidade Tardia. Essa privatização do espaço público também é um fenómeno peninsular e inclui a construção de novas estruturas em plena rua por iniciativas dos proprietários das domes e, por vezes, o traçado das vias é cortado (Alba Calzado, 2000: 291). 

Outros exemplos do século IV podem ser verificados na Galaecia, em Lucus mas já eram conhecidos na Tarraconensis, no século III em Barcino e, no século II, em 

Baetulo e Emporiae. Contudo, em Valentia, o processo só tem início na Antiguidade Tardia (Gurt Esparraguera, 2000-2001: 447). 

A transformação de edifícios públicos também integra esse fenómeno de transformação urbanístico. O teatro de Malaca, na Bética, converteu-se num centro para salgas de peixe (Rodríguez Oliva, 1993: 194). Em Carthago Nova, o teatro converteu-se em mercado no século V e substituído por um bairro residencial no século VI. Complexos termais foram adaptadas para a produção artesanal (Almagro Gorbea, Abascal, 1999: 148). 

O fórum de Conimbriga aparentemente funcionou normalmente até o século IV, mas atravessou todo um ciclo de destruição, espólio e reocupação no século VI. Há uma questão interessante sobre Conimbriga no tocante à sua situação no século VI. A Crónica do bispo Idácio afirma que a cidade foi destruída em consequência das guerras entre suevos e visigodos. Contudo, o registo arqueológico comprova a continuidade da cidade ao longo da Idade Média (Tranoy, 1974; De Man, 2006: 146ff). 

III. 3. 1. O Panorama Arquitetónico Lusitano

O desenvolvimento urbano da Lusitania e o subsequente aumento da presença de cidadãos romanos no território relacionam-se com a expansão de centros populacionais indígenas, agora elevados em categoria jurídica e uma nova realidade de assentamentos criados ex novo. 

Nessa última categoria incluem-se o porto de Sines, que teria iniciado a sua ocupação em meados do século I, de acordo com a datação da necrópole de Monte da Sardinha (Dias, Viegas, 1976-1977; Tavares da Silva, Coelho-Soares, 1979). Uma cronologia similar é proposta para a Ilha do Pessegueiro (Tavares da Silva, Soares, 1993) e Troia (Étienne et al., 1994). 

Há pouca informação a respeito da transição estratigráfica entre a fase pré-romana e o período pós-Cláudio na Lusitânia. Aparentemente, não há grandes esforços de romanização dos centros populacionais indígenas até o período Cláudio. 

O centro indígena de Chãos Salgados, situado a ca. 17 km de Sines, foi previamente habitado, pelo menos, desde o final do século IV a.C. (Tavares da Silva, Coelho-Soares, 1979). 

O seu complexo termal foi erguido no final do século I d.C., período que coincide com a construção das domes ao sul do fórum e do diagnóstico do aumento de importações cerâmicas e, especificamente, do consumo de terra sigillata sudgálica (Quaresma, 2003). 

Sabe-se que as cidades lusitanas cresceram e desenvolveram-se até meados do século II. Esse período de urbanização nos séculos I e II coincide com o início da primeira fase da produção dos preparados de peixe na província (Quaresma, 2012). 

Em finais do século I, a partir do período Flávio, uma última vaga de urbanização ocorrera nessas cidades. Estruturas, como o fórum de Conimbriga, foram reformados e as suas proporções passaram a reproduzir padrões pitagóricos a partir de módulos romanos de 10 pés (2,96 m) (Correia, 2017: 19). 

Uma vez estabelecida os padrões geométricos da grelha, foi possível reconstruir as partes perdidas do fórum a partir de aplicações do princípio geométrico e de comparações com exemplares contemporâneos disponíveis, como o pórtico de Cáceres (Correia, 2017: 19). 

Sabe-se que é possível implementar essa técnica para lidar com múltiplas orientações dos muros de uma terma, distinguindo uma intervenção Flávia de subestruturas anteriores (Correia, 2017: 20). As estruturas pré-romanas ou pré-Flávias foram removidas em detrimento do novo plano hipodâmico Flávio. Do mesmo modo, a comprovação do desenvolvimento de uma rede de abastecimento hídrico implica no crescimento das interações entre a construção pública e privada, especialmente nos séculos I e II. 

Esse modelo pitagórico é aplicado também na arquitetura doméstica, posto que foi comprovada a sua aplicação numa residência de Mértola (Rafael e Lopes, 2007). Correia (2017) aplicara-o na arquitetura pública e privada de Conímbriga e, seguindo a sua metodologia, Sousa (2018) estudou uma domus em Chãos Salgados, obtendo resultados similares. 

Sousa argumenta (2018: 99) que, na realidade, no século III ainda ocorreram reformulações urbanas na Lusitânia e cita a Casa del Anfiteatro, em Emerita Augusta, como exemplo, embora a planta já se encontre mais irregular (Beltrán, 2003: 37). 

As unidades romanas adotadas para esse exercício são módulos quadrados de septem pes de largura (214,2m). Contudo, observou que em Chãos Salgados o pes canónico de 29,63 cm fora substituído por uma variante maior, de cerca de 30,6 cm. Esse fenómeno pode ser uma decorrência de falta de rigor ou por necessidades práticas de usos do espaço, ou mesmo uma consequência do processo de transposição do projeto para o terreno (Sousa, 2018: 101). 

Qual seria o resultado se esse modelo arquitetónico fosse também aplicado às oficinas de preparados de peixe? As reformulações que essas oficinas sofreram podem revelar uma rutura com a arquitetura original do edifício. 

A partir do século III, com o início da “segunda fase” da sua produção de preparados de peixe, a Lusitânia ascendeu à posição de principal produtora do império. Embora a produção tenha aumentado, algumas oficinas foram abandonadas e outras tiveram as suas dimensões reduzidas. Isto sugere uma transformação no modelo de exploração dos recursos. 

Troia (Figs. 12 – 12ª) esteve habitada desde meados do século I até, possivelmente, o final do século VI. Durante os séculos I e II o complexo teria experimentado o seu apogeu. Todavia, no final do século II ocorreu uma interrupção de atividade nas oficinas, sendo que algumas das oficinas terão sido abandonadas (Pinto, Magalhães, Brum, 2014). 

Sabe-se que durante a sua fase seguinte, o complexo foi subdividido em quatro oficinas menores (Étienne et. al, 1994; Étienne, Mayet, 1998). Não se sabe se essa redução ocorreu, por exemplo, pela ação individual de herdeiros, ou pelo loteamento do espaço para a coparticipação de múltiplos exploradores comerciais. Todavia, atesta-se uma dinâmica social e económica de grandezas arquitetónicas diferentes contrapondo escalas produtivas distintas (Tab. 1). 

As reformulações que essas oficinas sofreram podem indicar uma rutura com a arquitetura original do edifício. Um futuro estudo aprofundado da arquitetura das oficinas e das cetárias contribuirá para esse debate com informações sobre o processo de estabelecimento das oficinas e os detalhes sobre a sua vida útil. 

Nesse sentido, as subdivisões das cetárias e das oficinas podem inserir as oficinas de preparados de peixe no mesmo fenómeno arquitetónico das subdivisões proposto por Ellis (1988), que caracterizou a arquitetura do Baixo-Império e que prosseguiu na Antiguidade Tardia. 

A arquitetura e a organização dos espaços de produção nas villae lusitanas ainda são objeto de estudo em Portugal. Uma possibilidade para melhor entender a exploração de recursos marinhos em pequena escala das villae pode residir no diálogo com a antropologia, mais especificamente, com a chamada “teoria antropológica do consumo” (Miller, 1987). 

Qual seria o impacto no debate académico sobre a economia romana imperial se aquela sociedade fosse tratada como um caso particular de sociedade de consumo? 

A antropologia propõe o estudo do consumo para compreender comportamentos sociais no contexto da humanidade contemporânea. Pode-se empreender um diálogo similar para o estudo da sociedade romana, a partir de um estudo de sua cultura material e da redefinição do conceito do consumo, a partir das relações e práticas sociais que este mobiliza. 

CONCLUSÃO

A criação da indústria de preparados de peixe no século I d.C. coincide com a intensificação da romanização na Lusitânia. Não está claro se a administração romana deliberadamente criou toda uma infraestrutura com o objetivo de promover transformações económicas na província, ou se os desdobramentos económicos na Lusitânia são consequência de uma trajetória própria e autónoma. 

O litoral e estuários ricos em recursos marinhos e o clima quente e seco favoreceram o desenvolvimento de uma poderosa indústria de preparados de peixe na província. A importância estratégica dos molhos e conservas de peixe na alimentação romana justificam o investimento na exploração da pesca, do sal e dos seus subprodutos em conserva, provocando o desenvolvimento de grandes oficinas de processamento de peixe ao longo do litoral. 

A investigação arqueológica em Portugal produziu um maior volume de informação sobre os centros produtores do Tejo e Sado. Assim, a despeito da alta densidade de centros produtores localizados no Algarve, o maior volume da produção de pesca e conserva até o momento é proveniente dos estuários do Tejo e do Sado. 

O relacionamento entre os centros produtores das villae e os centros urbanos próximos precisa de uma revisão à luz de novos dados produzidos pelos estudos recentes da realidade da grande área do litoral algarvio. Nesse espírito, as interações entre a Bética e a Lusitânia no que toca à logística de produção, envase e distribuição dos preparados de peixe também não estão totalmente esclarecidas. 

Outro elemento digno de nota é a possibilidade de que não se possua ainda uma visão nítida do alcance comercial da produção lusitana no circuito comercial de longa-distância. Os indícios de que produtos lusitanos são envasados em ânforas béticas são acrescentados ao facto de que nem sempre se distingue com exatidão as ânforas lusitanas das béticas. Assim, os dados estatísticos para a presença cerâmica lusitana-bética no oriente podem estar distorcidos. 

De facto, atesta-se a vitalidade do comércio lusitano na península entre o Baixo-Império e a Antiguidade Tardia. Segundo Fabião (2000, 2004), em Hispalis o comércio anfórico lusitano entre ca. 250 e 450 d.C. demonstra que cerca de 50% das importações peninsulares de preparados de peixe vinha da Lusitânia (Tab. 6). 

As ânforas lusitanas continuam atestadas na península no segundo quartel do século V, em Tarraco (Remollà Vallverdú, 2000), Ampúrias, embora escassas, (Reynolds, 2005) e, em grande quantidade, em Portus Sucronem (Hurtado, et. al, 2008). 

A ideia de que os centros produtores do litoral algarvio estariam ligados de alguma forma a algum consórcio hegemónico num “Circuito del Estrecho” carece de dados arqueológicos que permitam o desenvolvimento de uma teoria. No momento, pode-se afirmar apenas que a Lusitânia dispunha de uma estruturação logística diversificada e que as realidades a serem comprovadas numa grande área específica pode não se verificar válida para outras grandes áreas produtoras. 

Possivelmente, o Estreito de Gibraltar terá servido como polo facilitador desse circuito comercial regional. Quaresma (2012: 296 – 297) demonstra que os dados disponíveis sobre os naufrágios Punta Ala B (século II) e Cabrera III (século III), a Oeste da Itália, apresentam uma articulação de ânforas tunisinas e béticas (Figura 24 a-b). 

Fabião (2000: 718; 2004: 404) justifica essa presença de carga anfórica mista hispana e africana como consequência do declínio da produção bética dos preparados de peixe e da ascensão dos produtores lusitanos. A carga do naufrágio Cabrera III 

demonstra a participação mista de empreendedores privados e estatais, ilustrando um “renascimento económico” no século III (Reynolds, 2005: 382). 

Na Lusitânia, o século III marca a ascensão da província como o grande produtor dos preparados de peixe. Mas, uma aparente contradição situa a mesma data como início de um processo de abandono de centros produtores e da sensível redução das dimensões dos tanques e cetárias que sobrevivem. 

Entre os séculos III – V a popularização do consumo dos preparados de peixe no império estimula um fenómeno de substituição de uma tipologia de molho mais encorpada por uma mais líquida e pela gradual especialização ibérica na captura e substituição de peixes grandes pelos de pequeno porte. 

Durante o Baixo-Império, constata-se um novo padrão alimentar no império. Entre os séculos IV e VI o crescimento das importações de preparados de peixe ultrapassa os do azeite e do vinho em grandes centros importadores, como Hispalis (Quaresma, 2012: 297). 

Independentemente da polémica sobre a data da redução dos contentores piscícolas lusitanos e béticos, o envase em ânforas de bordo pequeno tornou-se uma tendência dominante. Para o presente estudo, esta informação é suficiente para apontar para as transformações logísticas ocorridas naquele período. Entretanto, o investimento em dados anfóricos e sobre o consumo de terra sigillata permitirá estudos mais densos sobre essa conjuntura económica. 

Sabe-se que havia um contexto histórico de crise demográfica entre meados do século II e princípios do século III. Segundo Duncan-Jones esse período corresponde a um processo de decadência de sítios agrícolas por todo o império, provocando fenómenos como o surgimento de villae fortificadas e a redefinição de relações laborais (apud Jongman, 2007: 196; Quaresma 2012: 258). Por outro lado, não se sabe com precisão qual teria sido o real impacto da chamada “Praga de Antonino” sobre a quebra económica nas províncias ocidentais (Scheidel, 2012: 11). 

Dito isto, aparentemente as cidades da Hispânia deram início a um lento e diversificado processo de transformação urbanística logo após ter atingido o seu apogeu económico, no século II. Seria correto caracterizar essa primeira fase como decorrência de uma supervisão estatal mais zelosa, considerando-se todo o cenário social e económico da relação entre Roma e as províncias durante a Pax? 

as suas províncias, a partir do século V. Seria possível articular esses dados arqueológicos a uma abordagem antropológica do consumo dos preparados de peixe? 

O consumo é um fenómeno cultural que satisfaz uma necessidade individual, mas é uma consequência de uma proposta social. As inter-relações sociais promovidas para a justificação de uma demanda comercial são um fator cultural que afeta toda a estrutura da atividade económica. 

Quando o mundo romano experimenta a transição para um universo cultural germânico e cristão, o consumo do produto perde legitimidade social e isso reflete-se num declínio económico provocado pela falta de interesse social e consequentemente, o desaparecimento de um mercado local que justifique o investimento na produção de preparados de peixe. 

Se assumirmos a premissa de que a economia romana se baseava numa coletividade de redes concêntricas de mercados locais, justapondo-se momentos de conectividade regional e inter-regional, a quebra do mercado consumidor local inviabilizaria completamente qualquer insistência com aquela atividade económica. 

Bernardes (2015) descreve como o consumo dos molhos à base de peixe transformaram-se de iguaria a medicamento na transição entre os mundos romano e islâmico. Essa recategorizarão do produto é um processo cultural, logo, passível de ser abordado por um viés antropológico. Seria então plausível buscar-se um diálogo epistemológico com a antropologia, de modo a se debater historiograficamente uma “teoria do consumo” (Miller 1987), devidamente adequada à realidades antigas. 

Os tópicos aqui debatidos oferecem um interessante potencial para o aprofundamento, num estágio futuro da investigação. O eventual desenvolvimento da investigação discutiria as particularidades arquitetónicas das cetárias catalogadas, por sítio, seguindo-se um diálogo mais denso com os dados anfóricos e um estudo mais extenso sobre as conjunturas económicas da Lusitânia. 

A reconfiguração urbana reflete-se na redução das cetárias lusitanas. Esse processo estaria, de algum modo, articulado a uma realidade de maior autonomia provincial para a gestão das próprias dinâmicas económicas a partir do século III? 

Um possível desenvolvimento deste estudo centra-se na possível aplicação do modelo pitagórico na orientação das novas dimensões de tanques e cetárias após o processo de redimensionamento dos centros de produção para a segunda fase da sua atividade económica. 

Ocorrem transformações na tipologia do produto, que passa a dar proeminência aos peixes pequenos e aos derivados mais líquidos do produto. Os dados arqueológicos referentes às transformações da produção também refletem transformações culturais do seu consumo, bem como indícios de transformações em todo um modo de vida. 

A retoma comercial que caracteriza a segunda fase de produção lusitana dura até o século V. Por outro lado, o século seguinte testemunha alguma continuidade da produção e distribuição de preparados de peixe. Na Lusitânia, tudo indica que a produção tardia permaneceu sediada no seixo Tejo-Sado. Todavia, desde o século III os centros de produção do Algarve estiveram mais ativos. 

A Lusitânia foi diretamente afetada pelas convulsões sociais provocadas pelas guerras suevo-visigóticas, ocorridas entre meados e terceiro quartel do século V. A importação de terra sigillata africana entra em declínio por volta de 450 d.C., mas resiste pontualmente até meados do século VI (Quaresma, 2012: 292 – 293). Na Bética o mesmo se verifica em meados do século VI, num cenário de declínio económico que envolve focos de peste e instabilidade militar (Reynolds, 1995: 31). 

A produção hispânica cessa até meados do século VI (Bernal Casasola, et al. 2003: 163). Nesse aspeto, sabe-se que a Vectigal, restabelecida por Teodorico, compromete os visigodos com o fornecimento de trigo a Roma, mas não há menções ao azeite ou os preparados de peixe (Perea Yébenes, 2003: 98). 

Existe toda uma conjuntura económica de retração comercial durante as chamadas invasões bárbaras e o gradual enfraquecimento da autoridade imperial sobre 

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As Oficinas de Preparados de Peixe da Lusitânia: arquiteturas e dinâmicas econômicas da sua produção (séculos I – VI d.C.)
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A influência Romana no Sado

O COMPLEXO INDUSTRIAL DE TRÓIA

O COMPLEXO INDUSTRIAL DE TRÓIA DESDE OS TEMPOS DOS CORNELII BOCCHI

The production center of Tróia since the times of the Cornelii Bocchi

Inês Vaz Pinto, Ana Patrícia Magalhães, Patrícia Brum

Troiaresort – Investimentos Turísticos, S,A. contacto  ines.pinto@troiaresort.pt

Abstract

The recent works preparing the redevelopment and presentation of the ruins of Tróia led to the identification of a level of construction from the time of Tiberius, including materials from Augustan times, associated with the walls belonging to the largest fish-salting factory at Tróia. These new stratigraphic data pre-date the Claudian era, to which the foundation of Roman Tróia was previously attributed. This makes more plausible the connection between Cornelius Bocchus and the Fish-salting production center, where an inscription dedicated to him was found.

The main purpose is to bring to light the 25 fish-salting workshops identified in the archaeological site of Tróia and the outstanding production capacity of this settlement. As some of the workshops have not been totally excavated, many of them are half destroyed by the tides, and others still lie hidden under the dunes, the production capacity that can currently be estimated and that is reported in these pages may be considerably less than the true capacity of this exceptionally large production center.

Resumo

Os recentes trabalhos preparatórios da valorização das ruínas de Tróia permitiram definir um nível de construção de época tiberiana, que inclui materiais augustanos, associado a paredes pertencentes à maior fábrica de salga de Tróia. Estes novos dados estratigráficos, que antecipam a datação claudiana anteriormente postulada para a fundação da Tróia romana, tornam mais palpável a relação que não poderá deixar de ter existido entre Cornelius Bocchus e o centro de produção de salgas de peixe onde foi encontrada uma inscrição que lhe é dedicada.

Nesta apresentação, pretende-se sobretudo dar a conhecer as 25 oficinas de salga que foi possível identificar nas ruínas de Tróia e a extraordinária capacidade de produção deste sítio. Tendo em conta que algumas das oficinas não foram escavadas na totalidade, muitas estão já incompletas pela destruição causada pelas marés, e outras estarão ainda escondidas sob as dunas, a capacidade de produção que se pode apontar hoje ficará muito aquém da capacidade real deste centro de produção de dimensão excepcional.

Foi achada em Tróia, no século XIX, uma placa honorífica com uma inscrição dedicada a um Cornelius Bocchus, da ordem equestre, que exerceu os cargos de praefectum fabrum, tribuno militar da III Legião Augusta e .âmine provincial (CIL II 5184, IRCP 207). Pertencia sem dúvida à conhecida família dos Cornelii Bocchi, originária de Salacia (Alcácer do Sal), à qual se referem outras inscrições e da qual se conhecem três gerações. Essa inscrição convida a relacionar a fundação do centro de produção de preparados de peixe de Tróia com esse personagem que terá vivido durante o principado de Augusto. É até possível que as suas várias funções tenham incluído o abastecimento dos exércitos, o que o levaria a investir na produção de salgas de peixe, um dos produtos essenciais à alimentação em campanha (Diogo e Trindade, 1999; Morais, 2007). Contudo, a atribuição da fundação do centro de produção de Tróia a um personagem da época de Augusto não condizia com a data de fundação inferida dos dados arqueológicos disponíveis, que apontavam para a época de Cláudio (Étienne, Makaroun, Mayet, 1994, p. 30). A inesperada identificação, em 2010, de um nível de ocupação da época  de Tibério, com materiais augustanos, associado à maior fábrica de salga de Tróia, veio dar maior  consistência à ligação deste centro de produção ao personagem que aí foi homenageado.

Neste estudo apresenta-se, em primeiro lugar, esse contexto datante, mas o contributo principal da equipa que desde 2006 se ocupa da conservação e valorização do sítio arqueológico de Tróia será o de dar a conhecer as múltiplas oficinas de salga aí identificadas, a maioria nunca publicada, com o objectivo de dar uma noção mais aproximada à realidade da importância e capacidade de produção deste complexo de preparados de peixe. O facto de algumas das oficinas não terem sido escavadas na totalidade, muitas estarem já incompletas devido à acção destrutiva das marés, e outras estarem ainda  escondidas sob as dunas significa, no entanto, que a capacidade de produção que se pode apontar hoje ficará muito aquém da capacidade real deste centro de produção de dimensão excepcional.

Fig. 1. Planta esquemática da área de escavação entre a oficina 2 e o armazém das ânforas.

UM NÍVEL DE ÉPOCA TIBERIANA

Os recentes trabalhos preparatórios da valorização das ruínas de Tróia exigiram a escavação de uma área imediatamente a nordeste da oficina de salga 2, entre a parede nordeste desta oficina e a parede sudoeste do armazém das ânforas há muito aí identificado (Fig. 1).

A oficina de salga 2 pertenceu, na época da sua construção, a uma grande fábrica de salga que não foi ainda completamente escavada, mas que compreendia, pelo menos, duas oficinas de tamanho desigual, interpretadas e publicadas em 1994 por R. Étienne, Y. Makaroun e F. Mayet com a designação de usines I et II. A oficina 1 tinha uma área estimada de 1106 m2 e dela se conhecem dezanove tanques, enquanto a oficina 2 tinha um total de dezanove tanques, alguns deles subdivididos, e uma área de cerca de 346,50 m2. As duas oficinas tinham comunicação directa entre si através de um corredor e só mais tarde, no século III, foram divididas em unidades de produção mais pequenas, tendo a passagem entre as duas sido fechada. A nordeste da oficina 2 situava-se um armazém, identificado nos anos 60 do século XX de acordo com as fotografias de M. Farinha dos Santos, que nos vários momentos da sua escavação conservava ainda ânforas encostadas às suas paredes (Fig. 2), e que nos finais do século II ou inícios do III foi desactivado para dar lugar a um mausoléu cuja parede noroeste assentou sobre a parede sudeste do armazém (Étienne, Makaroun e Mayet. 1994, pp. 81-82).

Fig. 2. Fotografia do armazém das ânforas do Arquivo Fotográfico do Prof. Manuel Farinha dos Santos (1958- 1963), cedido por João Luís Cardoso.

Fig. 3. Fotografia do armazém das ânforas durante a escavação de 2009.

Fig. 4. Fotografia da área de escavação entre a oficina 2 e o armazém das ânforas.

Os trabalhos arqueológicos desenvolvidos em 2009 e 2010 puseram à vista a parte deste armazém já anteriormente escavada, revelando que tinha 4,40 m de largura e um comprimento de 7 m (Fig. 3). A sudoeste, no espaço que o separava da oficina 2, apareceu uma parede perpendicular e adossada à parede nordeste dessa oficina, alinhada com a parede noroeste do já identificado armazém das ânforas. Foi interpretada como pertencendo a uma fase inicial e delimitaria um espaço que poderia ter a mesma função de armazenagem (Fig. 1).

Este armazém já havia sido parcialmente escavado, permanecendo intacto o piso e parte de seis ânforas que foram deixadas junto à parede noroeste deste compartimento. Apenas numa pequena faixa com 0,80 m de largura, junto ao limite nordeste deste compartimento, se pôde escavar depósitos não perturbados compostos por um primeiro nível de estratos de destruição, um nível com um enterramento infantil em imbrex, associado à necrópole do mausoléu, e finalmente o depósito arenoso que cobriu esta área depois do seu abandono.

A escavação da área entre a oficina 2 e o armazém das ânforas tinha uma grande potência estratigráfica por escavar, revelando uma estratigrafia complexa, composta por várias fases e com uma ampla diacronia (Figs. 4 e 5).

Fig. 5. Perfil estratigráfico realizado no limite sudoeste da área de escavação entre a oficina 2 e o armazém das ânforas.

Nos níveis superiores de escavação foram escavadas unidades estratigráficas (u.e.) possivelmente ainda ligadas à necrópole do mausoléu e identificaram-se algumas estruturas tardias já muito destruídas (ex. escada ([699], [790] e [791]) e troços de paredes) que confinavam um espaço cuja funcionalidade ainda está por definir. A canalização visível na Fig. 4 já era visível na oficina 2, enquadrando-se na sua segunda fase de construção/utilização.

A primeira fase de utilização deste espaço, e consequentemente das oficinas 1 e 2, corresponde ao piso [767]=[768] ilustrado no perfil da Fig. 5. A escavação do piso [767] = [768] revelou um fragmento indeterminado de parede de vidro itálico polícromo (nº1, Fig. 6), oito pequenos fragmentos de terra sigillata de tipo itálico, dois dos quais integráveis no tipos Consp. 22 e 25.1 (nºs 2 e 3, Fig. 6); dois bordos de ânforas Dressel 2-4, uma itálica de fabrico aparentemente da Campânia (com pequenas inclusões brancas angulosas ou sub-roladas, pequenos minerais negros arredondados ou alongados em menor quantidade e alguns óxidos de ferro) (nº 4, Fig. 6) e a outra com pasta granulosa e avermelhada aparentemente do baixo Guadalquivir (nº 5, Fig. 6); um bordo com arranque superior de asa de ânfora de pasta clara calcária típica da baía de Cádis, de forma indeterminada; dois bordos de ânfora Dressel 14 da variante A de fabrico regional (n.º 6, fig. 6); três fundos de ânfora Dressel 14, provavelmente também da variante A, de fabrico regional, (nºs 7-8, Fig. 6); três fragmentos de opercula de fabrico regional (nº 9, Fig. 6); um bordo de dolium igualmente de fabrico regional (nº 10, Fig. 6); um bordo com o perfil incompleto de um pequeno  dolium com pasta bege granulosa típica do baixo Guadalquivir; uma tigela de cerâmica comum de fabrico regional (nº 11, Fig. 6) e três fragmentos de bordo de tampas de cerâmica comum de fabrico igualmente regional.

A u.e. [796] corresponde à preparação de um piso (não visível no perfil) do lado noroeste da estrutura [770]. Esta unidade arenosa com uma grande densidade de brita do mesmo tipo que a brita utilizada nos revestimentos e pavimentos da primeira fase da oficina 2, apresentou um fragmento de parede lisa de terra sigillata de tipo itálico, um fragmento de ânfora de fabrico regional cuja forma é uma imitação da ânfora piscícola bética Dressel 7-11 (nº 12, Fig. 6), um grande fragmento de bojo com arranque inferior de asa de secção circular de uma ânfora Dressel 20 com a pasta bege granulosa típica do baixo Guadalquivir, pequeno conjunto de material que condiz com aquele que foi encontrado no próprio piso anteriormente descrito.

Fig. 6. Materiais recolhidos nas unidades estratigráficas [767], [768], [783], e [796].

 

O enchimento da vala de fundação [787] da parede [770] que encosta à parede nordeste da oficina 2, [782] e [783], apresentou um fragmento de Dragendor. 27 em terra sigillata sudgálica de características antigas (Polak, 2000, pp. 118-121), um fragmento de asa de ânfora Haltern 70 do Guadalquivir e quatro bordos de ânfora Dressel 14, variante A, de fabrico regional (nºs 13 e 14, Fig. 6); um fragmento de operculum de fabrico regional (nº 15, Fig. 6); uma tigela de fabrico regional (nº 16, Fig. 6) que se enquadra na forma III-C-1 da cerâmica comum das villae romanas de São Cucufate (Pinto, 2003, p. 221); dois fragmentos de bordo de panelas igualmente de fabrico regional (nºs 17 e 18, Fig. 6), a segunda das quais equivalente à forma VIII-C-1 da mesma tipologia (Pinto, 2003, p. 376); e um fragmento de tampa de bordo simples e outro de fundo, também estes de fabrico regional.

Sob o piso correspondente à primeira fase de construção/utilização da oficina foi identificada uma unidade de areias de duna amarelada ([794] = [795] = [811]), praticamente estéril de materiais.

Após esta u.e. aprofundou-se um pouco mais a escavação do lado sudeste da escada [699], e foi identificada uma u.e. arenosa esbranquiçada que corresponde ao substrato arenoso original na época romana, u.e. [813].

No seu conjunto, as referidas unidades estratigráficas associadas à parede adossada à parede nordeste da oficina 2 apresentam um conjunto de materiais relativamente homogéneo que associa terra sigillata itálica e um fragmento de terra sigillata sudgálica com um vidro polícromo itálico, ânforas vinárias Dressel 2-4 importadas da Campânia e da Bética, uma ânfora Haltern 70 e ânforas regionais de tipo muito antigo. A terra sigillata itálica indica uma cronologia de Augusto-Tibério (Conspectus 1990, pp. 90 e 96), e o fragmento de terra sigillata sudgálica, provavelmente de um momento inicial do período de Tibério devido à finura da sua parede, sugere uma data não anterior a esse período, datação esta que é confortada pelas ânforas regionais pouco canónicas, embora a maioria enquadrável na variante A da forma Dressel 14, que aparecem em Abul na época augusto-tiberiana (Mayet e Silva, 2002, pp. 30-31, 49-50) e ocorrem igualmente na olaria da Rua da Misericórdia, em Setúbal, datada do segundo quartel do século I, aí consideradas Dressel 14 com afinidades às ânforas Dressel 7-11 (Silva, 1996, pp. 47-48). De notar que ânforas lusitanas com afinidades às ânforas Haltern 70 aparecem já no Castelo da Lousa em época augustana (Morais, 2010, pp. 190-191, 216-217).

Estes contextos datáveis do período de Tibério, com um significativo conjunto de materiais augusto-tiberianos, revelam que a construção da oficina 2, e por conseguinte, da grande fábrica de salga a que pertence, não é posterior a esse período dando maior consistência à ligação da fundação do complexo de preparados piscícolas de Tróia ao Cornelius Bocchus aí homenageado.

Noutra perspectiva, a comprovação da produção de salgas de peixe em Tróia neste período ilustra a produção de salgas mais antiga no estuário do Sado, justificando a produção de ânforas na outra margem do rio nessa época.

UM GRANDE CENTRO DE PRODUÇÃO

A monografia publicada em 1994 por R. Étienne, Y. Makaroun e F. Mayet teve o imenso mérito de pela primeira vez dar a conhecer o centro de produção de preparados de peixe de Tróia e colocá-lo, desde logo, entre os maiores do mundo romano. O estudo das oficinas 1 e 2 (usines I et II) permitiu ainda compreender as principais fases de ocupação deste sítio e o processo de segmentação das oficinas em unidades de produção mais pequenas verificado no século III. A caracterização da oficina 3 (usine III), bem menor do que as anteriores, mostrou a única oficina completa até à data conhecida em Tróia e a variabilidade no tamanho das oficinas deste centro de produção.

Tal como é referido nessa monografia, outras oficinas estavam à vista, algumas devido a trabalhos de escavação, outras postas a descoberto pelas marés que na praia-mar alcançam as estruturas arqueológicas na orla do estuário do Sado.

Em 2007, por ocasião de um enchimento de praia no extremo nordeste da península para protecção das estruturas arqueológicas, procedeu-se à numeração das oficinas que iriam ser cobertas, em parte ou totalmente, por esse enchimento de praia, incluindo-se nessa sequência a grande oficina parcialmente escavada, mas não publicada, perto da necrópole das sepulturas de mesa, que recebeu a designação de oficina 4. As oficinas afectadas pelo referido enchimento de praia foram numeradas de 5 a 10 e deu-se o número 11 a uma oficina com cetárias pequenas, aparentemente tardia, situada num ponto alto da vertente sobre a praia, a nordeste do mausoléu e da necrópole situada nas suas traseiras (Silveira et al., no prelo). Devido ao curto espaço de tempo que decorreu entre a decisão de efectuar o enchimento e o seu início, recorreu-se ao levantamento topográfico feito por técnicos do IPPAR, e procedeu-se à descrição das estruturas e levantamento fotográfico.

Durante o levantamento realizado, perante a sequência de tanques de salga bastante destruídos que se viam na orla do estuário, e a dificuldade em distinguir as diferentes fábricas de salga a que pertenceriam, optou-se por definir as unidades de produção, ou seja, os compartimentos com tanques e pátio, a que se chamou “oficinas” na sequência da terminologia aplicada às unidades de produção de salga de peixe de Sines (Silva, Coelho-Soares e Soares, 2006).

No mesmo ano de 2007 foi necessário realizar uma sondagem preventiva nas traseiras de uma fábrica de salga situada na praia na zona do Recanto do Verde (ou Canto Verde), a noroeste das Instalações Navais de Tróia (Fuzileiros) e posteriormente foi possível empreender uma acção de levantamento arqueológico dessa fábrica já meio destruída pelas marés. Nessa fábrica foram identificadas duas oficinas de salga que receberam a designação de oficinas 12 e 13 (Pinto, Magalhães e Cabedal, no prelo).

Na orla do estuário, entre a zona residencial da Rua da Princesa e o Recanto do Verde, foram identificadas com segurança outras 11 oficinas, algumas delas muito destruídas, que foram numeradas a partir de noroeste e receberam a designação de oficinas 14-24. Imediatamente a sudeste das Instalações Navais de Tróia (Fuzileiros) existe um núcleo de ruínas romanas com uma oficina de salga que foi designada por oficina 25.

A localização das 25 oficinas de salga identificadas na península de Tróia é apresentada na Fig. 7. No presente texto descrevem-se sumariamente estas oficinas, apresentando-se as respectivas plantas esquemáticas feitas com base no levantamento topográfico das ruínas realizado pelo IPPAR em 20061 (Figs. 8-12) e uma tabela com as dimensões e capacidade de produção de cada uma (Fig. 13).

A numeração das oficinas refere-se sempre à sua planta original, mas as plantas incluem as remodelações posteriores. Nas estampas das Figs. 8-11, o cinzento escuro ilustra as actuais estruturas das oficinas, o cinzento claro representa as estruturas adossadas ou sobrepostas à planta da oficina (ex: oficinas contíguas ou a basílica, no caso da oficina 6) e o tracejado é a reconstituição hipotética da oficina.

Fig. 7. Localização das oficinas de salga na península de Tróia (www.earth.google.com).

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1 As plantas esquemáticas das oficinas 1, 2 e 3 baseiam-se nas plantas originais da monografia de R. Étienne, Y. Makaroun e F. Mayet (1994). No âmbito de um protocolo com a Universidade de Coimbra, em 2007 José Luís Madeira fez a planta esquemática das oficinas 12 e 13, e em 2008 actualizou a planta da oficina 2 e desenhou a planta da oficina 15.

Fig. 8. Plantas esquemáticas das oficinas 1 a 5.

Fig. 9. Plantas esquemáticas das oficinas 6 a 10.

Fig. 10. Plantas esquemáticas das oficinas 11 a 16.

Fig. 11. Plantas esquemáticas das oficinas 17 a 22.

Fig. 12. Plantas esquemáticas das oficinas 23 a 25.

Fig. 13. Dimensões, número de cetárias e capacidade de produção das oficinas de salga de Tróia.

Oficina 1 (Figs. 8 e 14)

A oficina 1 era um grande compartimento com tanques dispostos à volta de um pátio com um poço. Tal como acima referido, foi estudada e publicada por R. Étienne, Y. Makaroun e F. Mayet (1994, pp. 69-76) que registaram as dimensões que figuram na tabela da Fig. 13. Embora a sua escavação não tenha sido concluída, a possibilidade de medir o seu comprimento e largura nos lados noroeste e sudoeste permitiu estimar com razoável certeza a sua área total. Trabalhos recentes de desafogamento das areias que punham em risco a estabilidade do poço puseram à vista, no lado sudeste, o topo de paredes tardias que parecem seguir o traçado de cetárias, dando força à hipótese de que a oficina tinha tanques ao longo das suas quatro paredes, e tornando pertinente a estimativa de um volume de produção original, no Alto Império, de cerca de 700 m3 (Étienne, Makaroun e Mayet, 1994, p. 76).

Os novos dados cronológicos apresentados na primeira parte deste estudo mostram que esta oficina, sendo solidária com a oficina 2, data pelo menos da época de Tibério. No século III, a oficina foi segmentada em pelo menos três unidades de produção mais pequenas, as oficinas 1A, 1B e 1C, com capacidades de produção, respectivamente, de 168,21 m3, 157, 559 m3 e indeterminada (por não estar totalmente escavada) (Étienne, Makaroun, Mayet, 1994, pp. 83-88).

A oficina sofreu ainda outra remodelação, provavelmente no início do século IV, que implicou a construção de uma viela entre as unidades 1A e 1B que dava acesso ao pátio central  onde se situava o poço. Enquanto a oficina 1C parece não ter sofrido qualquer alteração, a oficina 1A terá tido algumas das suas cetárias segmentadas em tanques mais pequenos, vendo a sua capacidade de produção reduzida para 154,15 m3. Nesta fase, as cetárias da oficina 1B terão sido incorporadas na oficina 2A situada a nordeste (Étienne, Makaroun, Mayet, 1994, pp. 88-90).

De acordo com os materiais recolhidos nos níveis de lixeira e abandono que se acumularam dentro dos tanques e sobre o pátio, o término da produção terá ocorrido no final do primeiro terço do século V (Pinto, Magalhães, Brum, no prelo).

Fig. 14. Aspecto da fiada noroeste da oficina 1 (cetárias 8-14, vista para sudoeste).

Fig. 15. Aspecto da parte sudeste da oficina 2 (cetárias 1-10, vista para sudoeste).

Oficina 2 (Figs. 8 e 15)

A oficina 2, pertencente à mesma fábrica de salga que a oficina 1, à qual estava ligada por um corredor com dois degraus, era também um compartimento rectangular com tanques dispostos à volta de um pátio central e trabalhos recentes comprovaram que tinha cetárias ao longo das quatro paredes, sugerindo que é esse o modelo das grandes oficinas de Tróia. A data da sua construção será semelhante à da oficina 1, ou seja, não anterior à época de Tibério.

A limpeza, escavação pontual e estudo da oficina 2 levados a cabo em 2007 sugeriram que a segmentação das cetárias desta oficina é original, o que permite calcular que no Alto Império as cetárias escavadas preservadas na íntegra (1-6 e 9-11) tinham um volume de 65,62 m3. Se atribuirmos às cetárias não escavadas ou incompletas (7-8 e 12-19) uma profundidade média de 1,24 m, obtém-se um volume de produção estimado de 142,25 m3.

Fig. 16. Aspecto da oficina 3 (vista para norte).

Fig. 17. Aspecto da oficina 4 (cetárias 3 e 4 com fornos tardios, vista para sudoeste).

Oficina 3 (Figs. 8 e 16)

A oficina 3 foi descrita e publicada por R. Étienne, Y. Makaroun e F. Mayet que registaram as dimensões indicadas na tabela da Fig. 13 (1994, pp. 93-96). Trata-se de uma oficina bastante pequena quando comparada com as oficinas 1 e 2, mas que perfazia 103,10 m3 de volume de produção.

A planta desta oficina segue um modelo diferente, em U, com cetárias em apenas três dos seus lados, mas igualmente à volta de um pátio. As cetárias têm volumes entre 7,46 e 15,17 m3 e a sua profundidade varia entre 1,75 m e 1,95 m.

Oficina 4 (Figs. 8 e 17)

A oficina 4 é uma grande oficina cuja parte sudoeste foi parcialmente escavada nos anos 70 do século XX e objecto de uma sondagem em 2005 mas que nunca foi publicada. As grandes dimensões dos seus tanques e os múltiplos sinais de remodelação sugerem que data do Alto Império e que no Baixo Império foi segmentada (paredes tardias entre as cetárias 2 e 3, sobre a parede nordeste da cetária 4 e sobre a parede sudoeste da cetária 5) e viu o seu pátio invadido por um pequeno edifício com um lance de escadas, certamente de acesso a um primeiro andar. Depois de abandonada a produção de salgas, foram construídos dois fornos dentro das cetárias 3 e 4. Pela largueza do pátio, tinha certamente uma planta rectangular com cetárias ao longo das quatro paredes.

Actualmente apenas são visíveis cinco cetárias, quatro da fiada noroeste e uma da fiada sudeste, mas a base de um pilar a sudoeste, que devia sustentar o telhado sobre os tanques da fiada sudoeste, sugere que esta fiada se estendia desde a cetária 1 até outra cetária no canto sul alinhada com a cetária 5 e separada desta por outra cetária que também não está à vista. Assim, a fiada sudoeste teria pelo menos seis cetárias (incluindo a cetária 1), talvez sete, a fiada noroeste teria pelo menos as cetárias 1 a 4 e uma a nordeste da cetária 4, e a fiada sudeste teria também, pelo menos, outras três (incluindo a cetária 5), provavelmente cinco ou seis como a fiada noroeste. A fiada nordeste, onde se devia situar a entrada principal, teria um mínimo de quatro cetárias, perfazendo no mínimo dezassete cetárias. No entanto, é provável que as fiadas noroeste e sudeste se prolongassem para nordeste.

No que respeita à capacidade de produção, as três cetárias que estão suficientemente escavadas para que o seu volume seja medido têm 29,61 m3 (cetária 5) e 35,18 m3 (cetárias 2 e 4), num total de 99,97 m3. Se se calcular um volume médio e mínimo de 30 m3 para as 17 cetárias, obtém-se um valor mínimo estimado de 510 m3.

Num último momento de utilização, as cetárias 3 e 4, já parcialmente entulhadas, abrigaram fornos de adobe e uma mó, talvez para o fabrico de pão, e nesse ou noutro momento a parede noroeste da oficina foi reforçada com contrafortes que obstruíram parcialmente a viela imediatamente a noroeste. Não se conhece a data das remodelações e reutilização do espaço, nem a data do término da produção de salgas na oficina.

Oficina 5 (Figs. 8 e 18)

A oficina 5 é composta por duas fiadas de cetárias dispostas em L ao longo de dois lados de um pátio, mas falta-lhe certamente uma cetária a sudoeste das cetárias 8 e 9 e a fiada sudoeste.

Esta parte da oficina terá sido destruída por ocasião da construção, na primeira metade do século XX, da grande casa a sul conhecida como Palácio Sottomayor. A oficina é hoje delimitada a sudoeste pelo muro da envolvente dessa casa. Presume-se que originalmente tivesse uma planta em U, com cetárias dispostas em três lados, à volta de um pátio estreito e alongado.

Numa primeira fase, as cetárias conservadas teriam um volume total de 183,29 m3, destacando-se uma desproporcionadamente grande, a cetária 7, com m 45,70 m3 de volume, enquanto as outras não ultrapassam os 25 m3. Se a oficina tivesse outra cetária igual à cetária 6, com 24,89 m3, e uma fiada sudoeste semelhante à fiada nordeste, com 50,84 m3 de volume, a capacidade da oficina seria de 259,01 m3. O único vestígio de remodelação nesta oficina é a segmentação da cetária 5, cujo volume inicial foi reduzido de 24,11 m3 para 15,11 m3 distribuídos por três tanques mais pequenos (5a, 5b e 5c).

Não se conhece a data da sua construção nem dados sobre a sua escavação, certamente levada a cabo por iniciativa de D. Fernando de Almeida no final dos anos 60 ou no início da década de 70 do século XX.

Fig. 18. Aspecto da oficina 5 (vista para nordeste).

Fig. 19. Aspecto da parte central da oficina 6 (cetárias 4-6, vista para noroeste).

Oficina 6 (Figs. 9 e 19)

Só a parte nordeste da oficina 6 está à vista, estando a sua parte sudoeste sobreposta pelo edifício identificado como basílica paleocristã. No entanto, dentro da basílica, delineados nas áreas onde o pavimento abateu, são visíveis os contornos ou vestígios das cetárias reconstituídas a tracejado na planta esquemática.

Constata-se que a oficina 6, apesar de ser relativamente grande, tinha cetárias dispostas apenas ao longo de três paredes, com a particularidade de as suas fiadas laterais abrirem levemente em V. Esta disposição explicar-se-á pela necessidade de articulação do edifício com a viela a sudeste para a qual tinha saída, com a provável rua a noroeste e com os edifícios a sudoeste. Dada a forma irregular da oficina e a sobreposição da basílica, o cálculo da sua área (462 m2) é aproximado.

As suas cetárias são grandes, com uma profundidade entre 2,07 e 2,22 m, e as cinco cetárias que foi possível medir, entre as quais se destaca a maior cetária conhecida em Tróia (a cetária 1 com um volume de 57,06 m3), tinham um volume de 177,93 m3. Se considerarmos que as outras seis cetárias teriam um volume médio de 29 m3 (as cetárias 3 a 6 têm entre 29,53 e 31,90 m3), a capacidade de produção estimada da o>cina seria de 351,93 m3. Num segundo momento, a cetária 4 foi segmentada em quatro tanques mais pequenos reduzindo-se a sua capacidade de 31,90 m3 para 24,09 m3 no total dos quatro.

A oficina 6 foi dividida em unidades mais pequenas num segundo momento. Uma parede foi construída sobre a parede que divide as cetárias 3 e 4, e outra sobre a parede entre as cetárias 5 e 6, formando-se um novo compartimento a nascente da cetária 5, mas não se conhece o momento das suas várias remodelações. É provável que sejam contemporâneas da segmentação das oficinas 1 e 2 no século III, mas nada o prova. No entanto, pela dimensão das suas cetárias e vestígios de segmentação, é razoável supor que a oficina tenha sido construída no Alto Império.

A escavação de um enchimento no fundo da cetária 3, por ocasião do enchimento de praia de 2007, mostrou que essa cetária não terá laborado para além do século IV (Silveira et al., no prelo), contrastando com o abandono das cetárias das oficinas 1 e 2 no final do primeiro terço do século V.

Na parte sudoeste da oficina instalou-se uma necrópole, provavelmente no decurso do  século IV, que no final desse século terá sido sobreposta pela basílica paleocristã.

Fig, 20. Aspecto da oficina 7 (vista para sul).

Fig, 21. Aspecto da oficina 8 (cetárias 1 e 2, vista para sudoeste).

Oficina 7 (Figs. 9 e 20)

Antes do enchimento de praia, da oficina 7 era visível uma fiada de cetárias muito destruídas, embora com as paredes sul conservadas, e uns compartimentos a sul destas resultantes de uma remodelação tardia. As bases de quatro pilares sobre a parede sul, pilares esses que serviriam para sustentar a cobertura das cetárias, indicam que o pátio se situava a sul e que as restantes fiadas de cetárias estarão ainda sob a duna que existe nessa área. É provável que a entrada se situasse na viela a oeste, que separa esta oficina da oficina 6, e que esta oficina tivesse as cetárias dispostas em U.

É muito provável que houvesse, a sul, uma fiada paralela e semelhante à que se conhece a norte, e que a fiada que ligava as duas se situasse a nascente, orientada no sentido norte-sul. Se esta fiada tivesse apenas três cetárias, a oficina teria dezassete cetárias.

Não foi possível medir o volume de nenhuma cetária, pois embora se conheça a largura destas, variável entre 1,96 m e 3,60 m, não se conhece o seu comprimento. A parede de cetária norte-sul mais bem conservada tem 2,90 m e está incompleta, o que indica que as cetárias visíveis tinham pelo menos 3 m de comprimento. As duas cetárias em que foi possível medir a profundidade têm 1,93 e 1,95 m. Se as outras tivessem 1,90 m de profundidade e 3 m de comprimento, as oito cetárias da fiada norte teriam um volume estimado de 115,52 m3. Se houvesse outra fiada igual e outra cetária na fiada nascente com cerca de 15 m3, pode-se estimar que a oficina tivesse uma capacidade de produção de 235 m3.

Além da remodelação visível que terá subdividido a área do pátio, há sinais de significativas alterações na cetária 8, a nascente. Além desta cetária estar entre paredes-mestras, o seu pavimento está acima do nível dos outros, tem um pequeno tanque construído no canto sudoeste e uma entrada aberta na parede sul.

Não existem dados que permitam datar a construção, remodelação ou abandono da oficina, mas a sua articulação com a mesma viela que a oficina 6 e os vestígios de remodelação permitem  pensar que tenha sido construída no Alto Império, tendo laborado igualmente no Baixo Império.

Oficina 8 (Figs. 9 e 21)

A parte visível da oficina 8 foi completamente coberta de areia pelo enchimento de praia realizado em 2007 e outra parte estará ainda sob a duna a sul. Antes do enchimento foi possível constatar que estava muito destruída e a sua organização espacial deixa grandes dúvidas. A planta esquemática, feita a partir do levantamento topográfico muito incompleto e das observações feitas em 2007, tenta reconstituir parte da oficina.

O que se pode afirmar é que era uma oficina com cerca de 21,50 m de comprimento noroeste-sudeste e com uma fiada de cetárias nesse sentido com três pares de cetárias geminadas de origem.

O espaço entre as cetárias 5-6 e 7 seria uma entrada. A cetária 8, da qual só resta a parede sudoeste, desenvolvia-se para nordeste da fiada constituída pelas cetárias 1, 3, 5 e 7, devendo ser parte da fiada orientada no sentido nordeste-sudoeste.

Só foi possível medir a cetária 2 com 15,97 m3 de volume e outra pequena, a 7, com 3,16 m3, o que perfaz uma capacidade de produção mínima de 19,13 m3. A incerteza quanto ao traçado da oficina desaconselha a estimativa da capacidade de produção.

Fig, 22. Aspecto da oficina 9 (cetárias 1 e 3 e área do pátio, vista para sudoeste).

Fig, 23. Aspecto da oficina 10 (vista para sul).

Oficina 9 (Figs. 9 e 22)

Também a oficina 9 ficou coberta pelo enchimento de praia de 2007. A descrição então feita registou que tinha cerca de 12,75 m no sentido este-oeste, e cetárias com paredes que não excedem os 1,55 m de profundidade, o que indica serem das mais pequenas de Tróia. Eram visíveis três cetárias e a área do pátio. A fiada que tem as cetárias 1 e 2 tem uma parede mestra a sudoeste que parece ser o limite sudoeste da oficina, o que significa que esta se desenvolveria para nordeste.

Dada a reduzida dimensão das cetárias e a largura relativamente estreita do pátio, seria talvez uma oficina com cetárias dispostas em U, ao longo de três paredes, com um pátio estreito e comprido no sentido sudoeste–nordeste. Outra particularidade desta oficina, além da sua pequena dimensão, é a pouca largura da sua fiada noroeste-sudeste, mas a falta de visibilidade do conjunto pode ser enganadora.

Apenas foi possível calcular a capacidade de produção da cetária 1, com 2,70 m por 1,85 m de lado e 1,55 m de profundidade, o que significa um volume de 7,74 m3. Dada a configuração atípica desta oficina, não é seguro fazer uma estimativa quanto à sua capacidade de produção original.

Oficina 10 (Figs. 9 e 23)

A oficina 10 estava muito destruída pelas marés mas conserva ainda uma boa parte das suas estruturas, escondidas pela duna de areia a sudoeste. Em 2007, ficou totalmente coberta de areia pelo enchimento de praia. Eram visíveis sete cetárias dispostas em L, duas delas geminadas, e que formam uma fiada noroeste-sudeste e parte de outra fiada no sentido nordeste-sudoeste perpendicular à primeira. É nítido que a oficina se desenvolveria para sudoeste. Era delimitada por uma parede mestra a noroeste, que corria ao longo de uma viela, e por outra a sudeste, sendo possível medir o seu comprimento (ou largura) completo, que é de cerca de 16,70 m. Tudo indica que se trata de mais uma oficina de planta rectangular, com cetárias dispostas ao longo das paredes, mas não é possível depreender se teria três ou quatro fiadas de tanques.

Não é possível calcular o volume exacto das cetárias, pois nenhuma conservou todas as medidas originais, mas foi possível registar que podiam atingir 3,80 m de lado e 2,20 m de profundidade, o que significa cetárias de grandes dimensões. No entanto, conhecendo o comprimento nordeste-sudoeste da cetária 5 (3,80 m), conhece-se a largura da fiada, e é possível estimar a capacidade aproximada da cetária 1, com 2,20 m de profundidade, e das cetárias 5, 6 e 7 considerando que a sua profundidade seria de 1,90 m (próximo da profundidade da cetária 3 que era de 1,94 m). No total, estas quatro cetárias teriam volumes respectivamente de 31,77 m3, 21,80 m3, 20,94 m3 e 14,15 m3.

Se a cetária 4 tivesse uma profundidade igual à da 3, teria um volume de 5,45 m3. Considerando que a cetária 3 era semelhante à 4, as cetárias teriam um volume estimado de 99,56 m3, valor correspondente a uma só fiada de cetárias quando a oficina teria pelo menos três.

Oficina 11 (Figs. 10 e 24)

A oficina 11 seria uma pequena unidade de produção tardia pois situa-se num ponto muito acima da cota das oficinas 1 e 2, e sobre uma grande duna que se acumulou contra a parede traseira do mausoléu, o que significa que não é anterior ao século III, data em que esse edifício foi construído, e provavelmente ao século IV, dado o tempo necessário para a formação da duna.

Devido à sua situação actual numa vertente inclinada, a maior parte da oficina já se terá desmoronado e não é possível depreender a forma da sua planta original. Sobressai, no entanto, a pequenez das suas cetárias. Actualmente apenas são visíveis três, cuja profundidade não ultrapassa 1,25 m, tendo a maior 1,98 m por 1,15 m de lado, com uma altura de 1,14 m. No seu conjunto têm um volume de apenas 7,11 m3. No entanto, as dimensões das construções actualmente visíveis, na tabela da Fig. 13, poderão estar bastante aquém das originais.

Fig. 24. Aspecto da oficina 11 (vista para oeste).

Fig, 25. Aspecto da oficina 12 (cetárias 1-10, vista para sudoeste).

Oficina 12 (Figs. 10 e 25)

A oficina 12, situada na praia e totalmente alagada nas marés vivas, conserva apenas uma fiada completa de cetárias, e vestígios de três cetárias das fiadas perpendiculares a esta. O seu comprimento (ou largura) é de 34,15 m e o comprimento (ou largura) do pátio é de 28,5 m. Esta oficina estava geminada com a oficina 13 e pertenceriam ambas à mesma fábrica de salga. Uma sondagem realizada nas traseiras da oficina em 2007 revelou que a entrada entre as cetárias 10 e 11 levava a uma área murada mas sem cobertura que seria um quintal com área de cultivo, eventualmente também uma área de armazenagem (Pinto, Magalhães e Cabedal, no prelo).

O levantamento arqueológico desta oficina, realizado em 2007 (Pinto, Magalhães e Cabedal, no prelo), permitiu escavar a cetária 3 e registar que media 4,12 m por 3,84 m de lado, com 2,20 m de profundidade, perfazendo essa cetária 34,8 m3 de capacidade. Multiplicando a profundidade de 2,20 m pelo comprimento e largura das outras dez cetárias com o traçado conservado, obtém-se um volume global de 276,83 m3 que corresponde apenas ao valor estimado de uma fiada de cetárias.

Pela sua configuração, supomos que a oficina fosse do mesmo tipo que as oficinas 1 e 2 com cetárias dispostas ao longo das quatro paredes e um pátio grande e largo em proporção à área total da oficina.

Os trabalhos arqueológicos realizados nesta área revelaram que esta oficina não tem qualquer sinal de remodelação e apenas laborou no Alto Império, tendo ficado abandonada após esse período.

Fig. 26. Aspecto da oficina 12 (cetárias 10-12) e da oficina 13 (vista para noroeste).

Fig. 27. Aspecto da oficina 14 (vista para sudoeste).

Oficina 13 (Figs. 10 e 26)

A oficina 13, geminada com a oficina 12, está muito pior conservada do que a anterior.

Apenas se conserva a base das paredes e algum fragmento de pavimento, mas é possível delinear sete cetárias, alinhadas com as cetárias 3-11 da oficina 12, o que permite reconstituir o seu limite sudoeste. O comprimento noroeste-sudeste das cetárias varia entre 3 m e 3,97 m, o que aponta para uma oficina semelhante à 12. No entanto, o seu estado de destruição desencoraja qualquer estimativa.

Articulando-se com a oficina 13 e estando situada numa área onde não há vestígios de ocupação do Baixo Império, trata-se sem dúvida de uma oficina do Alto Império.

Oficina 14 (Figs. 10 e 27)

A oficina 14 situa-se, tal como a oficina 11, a meio da vertente inclinada de uma duna, sendo certo que a maior parte da oficina já se terá desmoronado, e não é possível depreender o traçado original da sua planta. A sua situação a uma cota muito alta e as dimensões relativamente pequenas das cetárias, comparáveis às da oficina 11, sugerem que seja uma oficina do Baixo Império. As duas cetárias que sobreviveram ao desmoronamento da duna têm apenas preservada a largura completa de um lado, que é 1,27 m no caso da cetária 1 e 1,80 m no caso da cetária 2.

Fig. 28. Aspecto da oficina 15  (cetárias 1a e 1b, vista para sudoeste).

Fig. 29. Aspecto da oficina 16 (vista para sudoeste).

Oficina 15 (Figs. 10 e 28)

A oficina 15 seria bastante comprida, com, pelo menos, 22,50 m de comprimento, mas relativamente estreita, com cerca de 10,9 m de largura. O seu pátio, com 1,90 m de largura, seria muito estreito, em forma de corredor.

Conserva-se essencialmente parte da fiada noroeste de cetárias, tendo a fiada sudeste desaparecido quase totalmente. As cetárias mais a nordeste da fiada noroeste foram totalmente destruídas pelas marés, mas as cetárias mais a sudeste parecem estar conservadas no interior da duna. As duas pequenas que estão visíveis (1a e 1b) são fruto da subdivisão de uma cetária maior que tinha 3,40 m de lado. Ainda é visível, em corte, o nível do pavimento do pátio. Não é possível calcular o volume total de nenhuma das cetárias, nem estimá-lo com razoável probabilidade.

Não há dados sobre a data da sua construção mas a solidez das paredes, os sinais de remodelação e a cota baixa a que se encontra sugerem que tenha sido construída no Alto Império.

Oficina 16 (Figs. 10 e 29)

A oficina 16 situa-se a uma cota elevada, na vertente de uma duna em erosão, e já se desmoronou em parte. Apenas é visível a parede de uma cetária de pequenas dimensões e uma parede mestra 4,80 m a sudoeste, que poderá ser a parede que delimita a oficina a sudoeste. No entanto, não é possível depreender a disposição da oficina no seu todo.

Dado o reduzido tamanho da sua cetária, cuja única parede preservada tem apenas 0,90 m de lado, e a cota alta a que se encontra relativamente à oficina 15, muito próxima, depreende-se que seja uma oficina tardia, certamente do Baixo Império.

Oficina 17 (Figs. 11 e 30)

Situada na praia, ao alcance das marés, a oficina 17 está muito destruída e a sua parte melhor conservada está coberta de areia e vegetação. São visíveis, no entanto, duas fiadas de cetárias, com vestígios de seis tanques, separadas por um espaço onde, a um nível superior, se situaria o pátio.

A planta e as proporções do que é visível da oficina sugerem um pátio estreito e alongado, em forma de corredor, ao estilo da oficina 15. A largura da oficina é de 12 m e a largura do pátio de 3,40 m.

As cetárias situadas na praia, já muito destruídas, estão actualmente cobertas por uma espessa camada de areia, só tendo sido possível medir a cetária 1, que tem precisamente 3,63 m por 3,20 m de lado e 1,20 m de altura incompleta. No entanto, o levantamento topográfico do IPPAR mostra as dimensões das cetárias 2, 4 e 5. Trata-se, sem dúvida, de cetárias de grandes dimensões, mas não é possível estimar a sua capacidade de produção, apenas parte do volume da cetária 1.

Fig. 30. Aspecto da oficina 17 (vista para sudoeste).

Fig. 31. Aspecto da oficina 18 (vista para sul).

Oficina 18 (Figs. 11 e 31)

Situada em grande parte na praia, na zona intertidal, só são visíveis duas cetárias da oficina 18, uma muito destruída, de grandes dimensões (cetária 1 com 3,72 m por 4,16 m de lado), e outra coberta de areia e vegetação (cetária 2). A altura incompleta das paredes da cetária 1, 0,90 m, permite calcular o seu volume mínimo, que é 13,92 m3. No entanto, é provável que tivesse pelo menos 2 m de profundidade.

Não foi possível compreender a disposição original da oficina 18, nem sequer de que lado estaria o pátio e a fiada de cetárias oposta.

Oficina 19 (Figs. 11 e 32)

A oficina 19 tem duas cetárias visíveis, separadas por um espaço com 2 m de largura onde, a uma cota superior, se situaria o pátio. É nítido que estas duas cetárias pertenciam a duas fiadas distintas e paralelas, alinhadas no sentido nordeste-sudoeste, que têm continuidade sob a duna a sudoeste. Parece tratar-se de mais uma oficina com o pátio estreito e alongado, em forma de corredor.

Nenhuma das cetárias conserva as dimensões originais mas são grandes cetárias das quais se pode calcular a capacidade mínima. A cetária 1 media 3,80 m de comprimento por 1,70 m de largura incompleta e 1,20 m de profundidade também incompleta, o que resulta num volume mínimo de 7,75 m3. A cetária 2 tinha 3,45 m de comprimento por 3,10 m de largura e 1 m de altura incompleta, o que permite e calcular um volume mínimo de 10,70 m3. Dada a pouca visibilidade desta oficina, não é possível estimar a sua capacidade de produção original.

É nítido que a sudoeste da cetária 2 foi feita uma construção mais tardia, a uma cota superior à do topo da parede. A dimensão relativamente grande dos tanques, a cota baixa a que se encontra e o facto de apresentar estruturas de diferentes fases construtivas sugerem que a oficina seja do Alto Império.

Fig. 32. Aspecto da oficina 19 (cetária 2, vista para oeste).

Fig. 33. Aspecto da oficina 20 (cetárias 1-2, vista para oeste).

Oficina 20 (Figs. 11 e 33)

A oficina 20 é muito difícil de compreender pelo aspecto atípico das suas estruturas, que decorre de vários momentos de construção e remodelação, e do avançado grau de destruição. São nítidos os restos de duas cetárias que seriam parte de uma fiada orientada no sentido noroeste-sudeste.

A cetária 1 tem a parede sudoeste conservada até ao topo, e o revestimento dessa parede cobre o topo da parede e prolonga-se na horizontal para sudoeste formando um pavimento que cobre uma zona entulhada com pedras pequenas, configuração esta atípica, pois é o único exemplo de um pátio feito sobre um entulhamento e cujo pavimento está ao nível do topo da parede das cetárias.

É possível que seja fruto de uma remodelação mais tardia do espaço da oficina e não o pátio original. Sobre este pavimento assenta uma parede mais tardia. Este pavimento e o entulhamento subjacente estão adossados a uma estrutura pré-existente a sudoeste, com um canto arredondado e de interpretação difícil.

A sudoeste há um troço de parede paralelo à parede sudoeste da cetária 1 que pode delinear a parede nordeste de outra fiada de cetárias. Com efeito, a sudeste das cetárias 1 e 2 há um grande número de fragmentos de parede e pavimento de cetárias fora da sua posição original e são visíveis paredes de cetária in situ, na vertente da duna, que poderiam formar a fiada sudeste da oficina.

Na planta da Fig. 14 propõe-se, a tracejado, esta possível fiada. Esta oficina parece ser outra com o pátio em forma de corredor, mas dado o grau de destruição e a dificuldade de leitura é preferível não tirar conclusões sobre a sua organização espacial.

As cetárias parecem ser relativamente grandes tendo em conta que a cetária 1 tem 4,20 m por 2,50 m de lado mas a sua profundidade é apenas de 1,47 m. Esta cetária está subdividida por uma parede com 0,42 m de largura, revestida com opus signinum dos dois lados (perfazendo 0,50 m de espessura) que assenta sobre o seu pavimento e meia-cana. Note-se a utilização do opus signinum (com cerâmica triturada) muito pouco habitual nas oficinas de salga de Tróia e sem dúvida uma característica tardia.

Por conseguinte, o estado de destruição desta oficina apenas permite calcular o volume de uma cetária (15,44 m3), e não há dados seguros para estimar a sua capacidade original.

Fig. 34. Aspecto da oficina 21 (vista para sudoeste).

Fig. 35. Aspecto da oficina 22 (vista para sudoeste).

Oficina 21 (Figs. 11 e 34)

A oficina 21 tinha originalmente 19,40 m no sentido noroeste-sudeste mas não é possível saber se este era o seu lado mais comprido pois a parte nordeste da oficina está completamente destruída e desaparecida.

Adivinha-se com razoável certeza uma fiada de cetárias ao longo da parede sudoeste. O pilar que existia a noroeste da cetária 1 sustentava a cobertura dessa fiada de cetárias, que devia ser composta por seis cetárias. As únicas cetárias visíveis, a 1 e a 2, encostavam às cetárias dos cantos oeste e sul, e pertenciam a fiadas orientadas no sentido sudoeste-nordeste. Entre as cetárias 1 e 2 e a fiada sudoeste, actualmente escondida pela areia, subsistem partes do pavimento do pátio.

Numa segunda fase, a oficina foi subdividida em duas oficinas mais pequenas por uma ou duas paredes que assentaram no pavimento do pátio. As paredes da nova oficina 21A, a sudeste, mantêm a altura original. A parede sudoeste conserva os orifícios onde encaixavam as traves de madeira que sustentavam o telhado e a parede sudeste conserva uma janela-lucernário. Como estas paredes apenas circundam a oficina 21A, depreende-se que sejam da fase de segmentação das oficinas.

Na segunda fase, a oficina 21A, a sudeste, ficou com 10 m de comprimento e a 21B, a noroeste, com 9,40 m de comprimento.

Dada a largueza do pátio, esta oficina, na sua fase original, seria do tipo de oficina com o pátio grande e proporcionado, como as oficinas 1 e 2, e provavelmente teria cetárias dispostas ao longo das quatro paredes. As cetárias não são das mais profundas, com 1,50 m e 1,70 m de altura, mas a cetária 2, que conserva as dimensões originais, é relativamente grande, com 3,40 por 2,70 m de lado, e a cetária 1 seria um pouco maior com um comprimento mínimo de 3,80 m. No que respeita à sua capacidade de produção, apenas se conhece o volume incompleto das duas cetárias visíveis, 31,21 m3 no total. Mas calculando que a oficina tem pelo menos a fiada sudoeste com seis cetárias sob a areia e teria pelo menos mais uma cetária em cada fiada perpendicular, se cada uma dessas oito cetárias tivesse um volume de apenas 13 m3, pode-se estimar um volume de 135,21 m3. Na verdade, pensamos que a oficina tivesse também uma fiada nordeste de cetárias, não só porque há outras plantas desse tipo em Tróia, mas também porque há uma cetária toda fragmentada, já desligada do resto da oficina, no espaço equivalente a essa fiada.

Embora não se tenham recolhidos dados sobre a datação da oficina, supõe-se que seja do Alto Império, tendo sido segmentada e remodelada no Baixo Império.

Oficina 22 (Figs. 11 e 35)

Com 20,80 m de comprimento, a oficina 22 tem cetárias de grandes dimensões, três delas com mais de 4,50 m de lado (4,52 m, 4,53 m e 4,57 m) no sentido nordeste-sudoeste, e com uma profundidade entre 1,92 e 2,10 m. Conservam-se, no todo ou em parte, sete cetárias. A capacidade de produção das cetárias 2, 4 e 5 perfaz 96,18 m3. Estimando que as outras quatro visíveis tivessem uma média de 30 m3 cada, a oficina teria uma capacidade de produção mínima de 215 m3.

O traçado global da oficina não é muito óbvio. Dada a grande dimensão das cetárias, e o espaço necessário para a entrada a nordeste, é possível que não tivesse uma fiada noroeste-sudeste, e que tivesse as cetárias dispostas ao longo de apenas três lados do pátio, como a oficina 6, mas é uma suposição. Esta oficina não tem sinais de remodelação e não existem dados referentes à sua cronologia, mas a grande dimensão das suas cetárias, a sua situação a uma cota baixa e junto a outras oficinas com sinais de remodelação são fortes indicadores de que seja igualmente do Alto Império.

Oficina 23 (Figs. 12 e 36)

A oficina 23 era uma grande oficina com um poço no pátio que lembra a oficina 1. Tinha certamente cetárias ao longo das quatro paredes e um pátio largo. Actualmente está muito destruída pelas marés.

Conservam-se apenas parte de dez cetárias cujos lados medem entre 3,95 e 4,25 m, à excepção das cetárias geminadas 7 e 8 (com 1,70 m e 1,85 m por 3,95 m) e da grande cetária 1 com um comprimento maior que 6,35 m por 4,23 m, lembrando a cetária 1 da oficina 6. A única profundidade que foi possível medir com precisão foi a da cetária 2, com 2,12 m e um volume de 35,59 m3.

Se estimarmos que as outras cinco cetárias mensuráveis (1 e 5-7) tinham cerca de 2 m de profundidade, no seu conjunto teriam cerca de 160 m3 de capacidade, o que pode ser menos de um terço da capacidade real da oficina.

Embora não se tenham recolhido dados concretos, a oficina tem sinais de remodelação e pelas suas dimensões é certamente do Alto Império.

Oficina 24 (Figs. 12 e 37)

A oficina 24 encosta à oficina 23, partilhando ambas a parede mestra que as separa e lembrando a ligação entre as oficinas 1 e 2 e também 12 e 13. No entanto, dela resta apenas um canto, o que não permite grandes ilações. Restam vestígios de três cetárias, mas apenas se conserva a largura completa da cetária 2, que é 3,87 m.

Fig. 36. Aspecto do poço e canto norte da oficina 23 (vista para norte).

Fig. 37. Aspecto da oficina 24 (vista para sudoeste).

Oficina 25 (Figs. 12 e 38)

A oficina 25, a sudeste das Instalações Navais de Tróia (Fuzileiros), é a última oficina a sudeste da grande estação arqueológica de Tróia. Conserva apenas parte de uma cetária e parte de uma bacia de limpeza com revestimento semelhante ao da cetária. Tendo em conta que é visível a parede mestra a sudeste da cetária e que a bacia de limpeza se situa a noroeste desta, depreende-se uma fiada de cetárias no sentido sudoeste-nordeste e que o pátio se situava a noroeste desta. A cetária é de grandes dimensões, com 3,30 m de comprimento, 2,20 m de largura incompleta e 2,26 m de altura, o que perfaz um volume mínimo de 16,41 m3. Não é claro se outras estruturas visíveis na área (não representadas na planta) faziam parte da oficina ou da fábrica de salga em que esta se inseria.

Fig. 38. Aspecto da oficina 25 (vista para sudoeste).

ASPECTOS CONSTRUTIVOS DAS OFICINAS

No que respeita ao tipo de construção, pode-se dizer que, no geral, as oficinas de salga de Tróia foram construídas em profundidade no solo arenoso, exigindo a escavação de largas áreas. O nível de circulação nos pátios situava-se acima do fundo das cetárias e um pouco abaixo do topo das paredes destas, verificando-se desníveis que podem atingir 1,5 m.

O primeiro passo da construção foi cobrir a areia de base com uma camada de argila avermelhada, visível sob os pavimentos de várias oficinas muito degradadas. As paredes exteriores foram feitas em opus incertum, com blocos não aparelhados ou grosseiramente talhados, na maioria dos casos com ligante argiloso. As paredes internas das cetárias são geralmente feitas com pedras mais pequenas, por vezes num opus vittatum irregular feito com pequenos blocos de pedra talhados de forma pouco regular, e quase sempre ligados com argamassa de cal, e só excepcionalmente com ligante argiloso, como é o caso na oficina 2. As principais pedras utilizadas são o calcário

Note-se que todo o material de construção, seja pedra, argila, tijolos ou telhas, teve que ser trazido da outra margem, visto a península de Tróia ser uma formação geológica exclusivamente arenosa.

As cetárias têm uma forma quadrada ou rectangular. Nalgumas oficinas as fiadas de cetárias parecem formadas por módulos quadrados que ocasionalmente são divididos em dois tanques rectangulares geminados (bem visível nas oficinas 12 e 23, por exemplo). Noutras, todas as cetárias são rectangulares, como no caso das oficinas 3 e 5. Mesmo nas oficinas em que a forma das cetárias é tendencialmente quadrada, um dos lados é ligeiramente maior do que o outro, como nos casos das oficinas 1 e 22.

Na realidade, as medidas das cetárias da mesma oficina e da mesma fiada são raramente regulares, verificando-se uma variabilidade relativamente grande no volume das cetárias, o que sugere que a construção das oficinas não seguiu um projecto rigoroso.

Algumas oficinas têm uma cetária muito maior do que as restantes, como é o caso da cetária 7 da oficina 5 (5,37 m por 3,70 m com uma profundidade de 2,30 m), da cetária 1 da oficina 6 (7,45 m por 3,70 m com 2,07 m de profundidade) e da cetária 1 da oficina 23 (6,35 m de comprimento incompleto por 4,23 m de largura com profundidade indeterminada). Estas grandes cetárias têm paralelo na cetária 2 da oficina da Casa do Governador (Belém), com 6,30 m por 3,40 m de lado e 1,60 m de altura, tendo sido posta a hipótese de ter a função de depósito de água (Filipe e Fabião, no prelo).

As cetárias foram revestidas com uma argamassa de cal com brita calcária, que preferimos não designar por opus signinum para não confundir com a argamassa com cerâmica triturada, de cor rosada, conhecida por esse nome. Excepcionalmente, foram usados pequenos seixos rolados em vez de brita, no caso da oficina 9. Os cantos interiores dos tanques eram arredondados e a junção do pavimento com as paredes era colmatada por uma meia-cana horizontal em argamassa igual ao restante revestimento.

Esta opção pela argamassa com brita calcária repete-se na região de Setúbal, na região de Lisboa, em Sines e Lagos, pelo menos no Alto Império. Em Setúbal, foi utilizado na fábrica de salga da Travessa de Frei Gaspar (só no século IV ou V se usou opus signinum) (Silva, Soares e Soares, 1986) e também no Creiro (Arrábida) (Silva e Coelho-Soares, 1987); foi utilizado em Sines (à excepção de um pequeno tanque revestido a opus signinum numa das cinco oficinas conhecidas, a oficina B do Largo João de Deus) (Silva e Coelho-Soares, 2006), na Rua dos Correeiros (Lisboa) (Bugalhão e Sabrosa, 1995) e em Belém, na Casa do Governador (Filipe e Fabião, no prelo), a título de exemplo.

Em Lagos, as cetárias da Rua Silva Lopes da primeira fase de construção são revestidas a argamassa com pequenos seixos rolados (Ramos, Almeida, Laço, 2006, pp. 87-88). Este tipo de argamassa com brita calcária, e excepcionalmente seixos rolados, foi utilizada em Tróia ao longo de todo o período romano, não se conhecendo uma única cetária revestida a opus signinum, nem mesmo nas oficinas consideradas do Baixo Império. A cetária 8 da oficina 7 tem uma cetária com pavimento em opus signinum grosseiro, mas é fruto de uma remodelação visto que sobre ele foi construído um pequeno tanque semi-circular e numa das paredes da cetária foi aberta uma porta (Silveira et al., no prelo). Conhecem-se, no entanto, alguns remendos em opus signinum em paredes de tanques das oficinas 1C, 6 e 10. A oficina 20, por sua vez, tem ténues vestígios, num dos seus tanques, de uma parede de subdivisão tardia revestida a opus signinum.

ORGANIZAÇÃO ESPACIAL NAS OFICINAS DE SALGA

Todas as oficinas com o traçado completo a descoberto apresentam planta regular e simétrica, presumindo-se que todas tivessem essa característica. No entanto, distinguem-se vários modelos de oficinas.

As oficinas 1 e 2 sugerem que o modelo das oficinas grandes de Tróia era um compartimento rectangular, com cetárias dispostas ao longo das quatro paredes, e um pátio grande e largo em proporção à área total da oficina. Assim, a oficina 1, com 1106 m2 de área, tem um pátio com 514,5 m2, ocupando quase metade da área total, enquanto a oficina 2, com 346,5 m2 de área tem um pátio que ocupa 101,4 m2, ou seja, quase um terço da área total. Outras oficinas com plantas do mesmo tipo seriam a 4, a 12, a 21, a 22 e certamente a 23. Este tipo de oficina tem um paralelo próximo na oficina da Casa do Governador (Belém) (Filipe e Fabião, no prelo), embora essa tenha uma planta rectangular um pouco mais alongada.

Nestas oficinas, o pátio seria um espaço de trabalho de preparação do peixe, deposição temporária do sal e envasamento dos produtos retirados dos tanques e provavelmente também de filtragem dos molhos.

A oficina 6 é também uma oficina relativamente grande mas apresenta um modelo alternativo, com cetárias apenas em três lados. Além disso, as suas fiadas laterais abrem ligeiramente em V, o que se deverá ao facto desta oficina ter sido instalada entre ruas e edifícios pré-existentes.

As oficinas mais pequenas têm geralmente cetárias dispostas em U, ao longo de três lados do pátio. O melhor exemplo é a oficina 3, completa, mas também a oficina 5 devia seguir esse modelo.

No caso da 3, o pátio ocupa menos de um quinto da área total, mas também estes pátios têm largueza para serem áreas de trabalho. A planta em U, bastante comum, lembra o exemplo paradigmático da oficina de Cotta (Ponsich e Tarradell, 1965, p. 68).

A oficina 15 é um exemplo de oficina com pátio estreito e alongado, entre duas fiadas de cetárias, em forma de corredor, com 1,35 m de largura, que lembra a oficina da Rua Silva Lopes, em Lagos, com uma “zona central de acesso ou de trabalho” estreita e alongada, designada por “corredor”, com entrada num dos lados mais estreitos e tanques ao longo dos outros três lados (Ramos, Almeida, Laço, 2006, pp. 87-89). No entanto, o pátio da oficina 15 será proporcionalmente mais estreito.

Em Tróia, também as oficinas 17 e 19, e possivelmente a 20, têm esta disposição. No entanto, nenhuma está completamente preservada e não se conhece, por isso, uma planta completa deste tipo de oficina. Estes espaços internos das oficinas em forma de corredor mais dificilmente seriam espaços de trabalho que não fosse o de encher os tanques com peixe e sal e envasar as ânforas com os produtos retirados das cetárias.

As oficinas 7, 8, 9, 10, 18, 24 e 25 estão demasiado destruídas para que se possa depreender a sua organização espacial.

Nota-se, nas oficinas de Tróia, a ausência do modelo com fiada dupla de cetárias, que se verifica em Setúbal na Travessa de Frei Gaspar (Silva, Soares e Soares, 1986), na Oficina A do Largo João de Deus e na Oficina A da Rua Ramos da Costa em Sines (Silva, Coelho-Soares e Soares, 2006) e na unidade 1 do complexo fabril da Rua dos Correeiros (Bugalhão, 2001, p. 70), a título de exemplo.

O espaço disponível terá afectado a certo ponto a planta das oficinas. Enquanto as oficinas 1 e 2, e mesmo a 4, parecem ter-se espraiado em zonas amplas, sem constrangimentos de espaço, outras parecem ter sido condicionadas pelos espaços pré-definidos em que se inseriram. Os exemplos mais óbvios são as oficinas 3, 5 e 6, construídas em lotes situados entre vielas, no caso das oficinas 3 e 6, ou entre um edifício e uma viela, no caso da oficina 5. No caso das oficinas muito destruídas actualmente na orla do estuário, não há visibilidade suficiente para se poder avaliar.

No que respeita às oficinas situadas na vertente de dunas, a cotas altas, têm cetárias muito pequenas, certamente tardias, mas não é possível visualizar o seu traçado global.

Pode-se dizer que as oficinas de Tróia têm tendência para uma planta regular e simétrica mas apresentam uma relativa variabilidade e irregularidade no seu traçado e nas suas proporções.

A DATAÇÃO DAS OFICINAS DE SALGA

Só as oficinas que foram alvo de trabalhos arqueológicos bem documentados oferecem dados cronológicos. É o caso das oficinas 1 e 2, alvo de sondagens e interpretação que definiram que a sua fundação ocorreu no Alto Império. Os trabalhos descritos na primeira parte deste estudo mostraram que a sua construção começou pelo menos na época de Tibério. As oficinas 12 e 13 revelaram uma ocupação exclusivamente no Alto Império e as oficinas 4 e 6 são igualmente dessa época. A oficina 4 pela sua dimensão e pelas extensas remodelações que sofreu, e a oficina 6 porque foi parcialmente coberta por um edifício do Baixo Império, tendo sofrido alterações na parte que ficou a descoberto.

No que respeita às oficinas 3 e 5, de dimensão média, parece-nos provável que sejam igualmente do Alto Império pois articulam-se com um rua que ladeia a oficina 6 e com os edifícios que antecederam a basílica paleocristã.

As oficinas 11, 14 e 16, pela sua situação em pontos altos de dunas, terão sido construídas tardiamente, certamente no Baixo Império, e destacam-se pela pequena dimensão das suas cetárias.

Esse facto e a tendência para a segmentação das grandes oficinas e até de algumas grandes cetárias, sugere que já não se construíram grandes oficinas em época tardia.

E como datar as oficinas que estão hoje na orla do estuário do Sado, meio destruídas pelas marés? O abandono precoce das oficinas 12 e 13 no final do Alto Império explicar-se-á pela subida do nível das águas na embocadura do Sado desde a época romana. É provável que as outras oficinas implantadas a uma cota muito baixa (oficinas 7-10, 15 e 17-25), hoje na praia à mercê das marés, e que têm todas uma construção sólida e grandes cetárias, tenham sido construídas no Alto Império, com continuidade de utilização, muitas delas com remodelações, no Baixo Império.

A CAPACIDADE DE PRODUÇÃO DAS OFICINAS DE SALGA NO ALTO IMPÉRIO

A segmentação das grandes oficinas, e por vezes das próprias cetárias, na primeira metade do século III, como se verificou nas oficinas 1 e 2, sugere que o complexo de produção de Tróia viveu o seu auge durante os séculos I-II. As oficinas que são fruto da segmentação de grandes oficinas, que não são tratadas neste estudo, e as que são nitidamente tardias (oficinas 11, 14 e 16) têm uma capacidade de produção nitidamente reduzida.

Voltando ao objectivo inicial de dar uma noção da capacidade de produção do complexo de salgas de peixe provavelmente fundado por um Cornelius Bocchus, considera-se, pelas razões acima apontadas, que as infra-estruturas de produção do complexo de salgas de peixe de Tróia do Alto Império hoje conhecidas são as oficinas 1-10, 12-13, 15 e 17-25.

Pretende-se calcular a capacidade de produção das oficinas que resulta da soma do volume das suas cetárias, tendo consciência de que a capacidade máxima não terá sido utilizada frequentemente ou mesmo nunca, o que não significa que não seja indicativa em termos comparativos.

Reunidos os dados relativos ao Alto Império na tabela da Fig. 39, verifica-se uma capacidade de produção comprovada de 1398 m3 e estima-se uma capacidade de produção com razoável probabilidade de 3209 m3, à qual se deve somar a capacidade real de produção da oficina 3, obtendo um valor de 3312 m3, que ficará muito aquém da capacidade real deste centro produtor, tendo em conta que não foi possível registar qualquer valor para as oficinas 13, 15 e 24 e não se fizeram estimativas relativamente às oficinas 8, 17-20 e 25.

A contagem das cetárias hoje visíveis aponta para um mínimo de 153 existentes no Alto Império, embora de dimensões muito variáveis.

Estes dados permitem comparar Tróia com algumas outras oficinas e centros produtores de salgas e molhos de peixe com significado no Alto Império (>g. 40), embora se trate de uma comparação nem sempre muito significativa, dadas as características diversas dos sítios de que se dispõem dados, e a insuficiência de dados sobre outros complexos produtores. Apontam-se sítios de referência na Mauritânia Tingitana como Lixus (Ponsich et Tarradell, 1965, pp. 9-37) e Cotta (ibid., pp. 5-68) mas também Sabratha, na Tripolitania, um aglomerado urbano com múltiplas pequenas unidades de produção (Wilson, 2007). À Bética, vai-se buscar o exemplo clássico de Baelo Claudia (Bolonia), onde as unidades de produção estão integradas nas próprias casas do bairro industrial, e cuja capacidade de produção é apontada sem distinção clara de épocas, indicando-se que seria superior na época tardo-romana (Bernal et al. 2007, p. 213). Na Lusitânia, é incontornável a Casa do Governador, em Belém (Filipe e Fabião, no prelo) pela sua dimensão excepcional e pelos dados quantitativos que oferece; a Travessa de Frei Gaspar (Setúbal) (Silva, Soares e Soares, 1986) e o Creiro (Arrábida) pela sua proximidade a Tróia, e porque permitiram a estimativa da sua capacidade de produção (Étienne, Makaroun, Mayet, 1994, p. 109); Sines por revelar um conjunto de oficinas relativamente próximas como as de Tróia (Silva, Coelho-Soares e Soares, 1996); e Lagos, donde se indica a Rua Silva Lopes (Ramos, Almeida, Laço, 2006), apesar de não espelhar a importância do importante aglomerado industrial em que se insere. Omitem-se sítios importantes como Olisipo, onde se conhecem várias unidades de produção que laboraram no Alto Império (Bugalhão, 2001, pp. 52-54) mas faltam dados quantitativos significativos para esse período.

Nesta tabela, Tróia destaca-se, em primeiro lugar, por ser o sítio com mais unidades de produção identificadas. Pode-se dizer também que será o centro produtor com unidades de produção ou oficinas com maior dimensão, tendo em conta que as 18 unidades de Sabratha têm um volume de apenas cerca de 100 m3, o que indica serem muito pequenas, e mesmo Lixus tem unidades de produção com uma capacidade média de 100 m3. Embora Tróia tenha uma unidade com essa capacidade (oficina 3), tem várias com capacidade mínima comprovada (oficinas 1, 5 e 6) ou capacidade estimada (oficinas 4, 7, 22 e 23) nitidamente superiores (Fig. 13).

Nesta comparação, destaca-se pela sua dimensão a oficina da Casa do Governador, em Belém, que ocupava uma área (1525 m2) maior do que a da oficina 1 de Tróia (1106 m2). No entanto, talvez não tivesse uma capacidade de produção tão elevada quanto esta pois embora as duas oficinas estejam incompletas, as 19 cetárias escavadas de Tróia têm um volume de 465 m3 (Étienne, Makaroun e Mayet, 1994, pp. 75-76) enquanto as 34 cetárias escavadas da Casa do Governador têm um volume de 335 m3 (Filipe e Fabião, no prelo).

As oficinas de Setúbal, Creiro e Sines, apesar de situadas na mesma região ou em região próxima, são bastante mais pequenas do que as oficinas de Tróia. Já a oficina de Cotta tem uma capacidade de produção comparável à capacidade estimada da oficina 5 de Tróia, que se pode considerar de dimensão média neste complexo de produção.

Não havendo o propósito de fazer uma comparação exaustiva, fica o contributo para a uma melhor noção da dimensão do complexo de produção de Tróia.

Fig. 39. Número de cetárias e capacidade de produção das oficinas consideradas do Alto Império.

Fig. 40. Comparação da capacidade de produção de Tróia com outros sítios ou centros de produção.

CONCLUSÃO

Os dados recolhidos no trabalho de identificação e caracterização das oficinas de salga de Tróia só vêm reforçar o carácter excepcional deste centro de produção de conservas e molhos de peixe, onde se conhecem à data 25 oficinas de salga com uma capacidade de produção preservada e mínima de 1398 m3 no Alto Império, aquém da sua capacidade real, mas sem paralelo conhecido no mundo romano.

Se a nova cronologia de ocupação do espaço envolvente da oficina 2, do período de Tibério, permite aproximar a construção do complexo industrial do Cornelius Bocchus que aí foi homenageado, também o excepcional investimento que este complexo implicou, ou mesmo só a grande fábrica composta pelas oficinas 1 e 2, exige que tenha sido construído por uma pessoa, família ou sociedade com um excepcional poder económico e garantia do escoamento dos produtos. Sem o  provar, os novos dados dão consistência à hipótese de o Cornelius Bocchus homenageado em Tróia ter tido um papel fundamental na fundação do complexo de salgas de peixe aí situado.

O COMPLEXO INDUSTRIAL DE TRÓIA DESDE OS TEMPOS DOS CORNELII BOCCHI

Inês Vaz Pinto, Ana Patrícia Magalhães, Patrícia Brum
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Garum What’s Going On

Garum

Garum

Garum era sem dúvida o condimento favorito dos romanos. Feito de diversas partes de peixe fermentadas, era um tipo de molho de peixe produzido em todo o império. Fontes antigas descrevem os diferentes tipos de garum e como era feito.

A designação genérica GARUM é normalmente utilizada para definir uma série de produtos de composição e consistências diversas, como molhos e pastas obtidas através da fermentação em salmoura, através das enzimas, de parte de peixes ou da sua totalidade.

 A imagem deste molho de peixe que emerge da literatura antiga é complexa. Os escritores antigos que discutem esses produtos fazem-no sem a precisão de que precisamos e muitas vezes contradizem-se, de modo que uma compreensão precisa de qual molho corresponde a qual receita, processo de produção ou nome é tudo menos clara. in Sally Grainger

Altamente proteico, o GARUM, aumenta a intensidade do sabor e era muito apreciado no passado. O GARUM podia ser feito apartir de diversos tipos de peixe, anchovas, cavala, atum, moreias e outros tipos de pescado, que determinavam a sua qualidade e o seu preço.

Tentamos resumir de forma genérica as designações mais comuns e ao que correspondem, com base nos trabalhos que podem aceder pelos links anexos.

In Search of Garum. The “Colatura d’alici” from the Amalfitan Coast
(Campania, Italy): an Heir of the Ancient Mediterranean Fermented Fish
Sauces. Alfredo Carannante, Claudio Giardino, Umberto Savarese

GARUM

Originalmente realizado com espécies e partes de peixe não bem identificadas, cujo nome grego era GAROS (de onde veio o nome do molho GARON, em grego) , o garum romano foi produzido a partir de diferentes espécies de peixes. Isidore afirma: “Ex infinito genere pisciorum”. Outras espécies, entre as quais moreias, enguias, tainhas, eram usadas para produzir garum, 

NIGRUM - BLACK GARUM

O melhor garum, NIGRUM era produzido a partir de cavala (Scomber scombrus)

SOCIORUM

No século I d.C, o garum sociorum, produzido em Espanha a partir da maceração de cavala, era considerado o melhor garum. O seu custo era comparável apenas ao dos melhores perfumes (com mil sestércios, compram-se dois congi, o equivalente a cerca de seis litros) Marcus Valerius Martialis (Século I d.C.) elogia o luxo do garum produzido desde que o primeiro sangue jorrou da cavala recém cortada, considerado um particularmente luxuoso e apreciado presente.

MURIA

MURIA foi produzido a partir de atum (Thunnus thynnus), mas também anchovas (Engraulis encrasicolus) que estavam na base de um valioso tipo de garum.

BUZZONAGLIA

Por vezes, o garum era produzido apenas com entranhas de peixe, como as do atum, misturando algumas entranhas com sangue e a fáscia abdominal gorda, o chamado “Buzzonaglia”. A origem deste garum baseava-se na reciclagem de rejeitos de peixe, como entranhas, partes de sangue e gordura, e peixes menores inteiros, mais difíceis de conservar.

FLOS GARI LÍMPIDO & LIQUAMEN GARI

A qualidade do garum derivada não apenas das espécies de pescado e das partes utilizadas, mas também do processo de filtragem. No final da maceração, o garum era filtrado através de cestas e era obtidas diferentes qualidades: O flos gari límpido (“flor” do garum) obtido a partir do primeiro líquido filtrado e liquamen gari, líquido menos valioso, por vezes com elementos sólidos, obtido a partir da filtragem dos depósitos mais rudes.

LINQUAMEN

LINQUAMEN, mesmo que originalmente diferente do garum, foi usado genericamente para definir o molho de peixe desde o século III d.C. Fontes anteriores indicam que esta classificação se refere a garum feito de sangue e vísceras de peixes maiores, como atum e cavala.

Em Apicius, o liquamen é o termo geral para os molhos de peixe e mesmo quando encontramos o termo garum- com duas exceções – refere-se à parte de um composto tranduzido diretamente do grego: όıνογαρον (oenogaron = oenogarum) e, portanto, referindo-se a o molho de peixe original.

FLOS FLOS GARI

Além destas duas qualidades, ( Flos Gari e Linquamen) ainda outra deve ser adicionada: a “flos flos gari”, “nata”, cuja origem e espécies usadas, geralmente cavala ou atum, sempre foram especificados.

ALEC

A pasta recolhida nos filtros, geralmente contendo espinhas e restos de peixe, foi chamada allec (com as variações de hallec, hallex, allex), palavra que originalmente significava “putrefação” ou “resíduos” e representava o pior produto, frequentemente dado a os escravos. O allec, no entanto, também poderia derivar da produção das melhores qualidades de garum; Neste caso, o produto resultante da filtragem após a maceração das entranhas, sangue ou pedaços de cavala ou atum, foi considerado valioso e servido temperado com sal e pimenta, vinho e cenoura, para estimular o apetite antes das refeições.
Existiam variações luxuosas de allec, produzidas a partir de ostras, ovas de ouriço-do-mar, anêmonas-do-mar e fígado de tainha.

GARUM COM INGREDIENTES

O melhor garum era obtido sem adicionar outros ingredientes, mas havia várias variedades obtidas com a adição de vinagre (oxygarum), óleo (oleogarum), vinho (oenogarum), água (hydrogarum) e mel (melligarum / mellogarum).

Apício, no seu famoso tratado de culinária, apresenta uma receita de enogarum para temperar tubérculos, composto por especiarias, liquamen, mel e azeite, e outra receita de oxygarum usado como molho digestivo, composto por uma mistura de especiarias amassadas com mel e diluído com liquamen e vinagre.

OXYGARUM

Com adição de vinagre

OLEOGARUM

Com adição de óleo ou azeite

OENOGARUM

Com adição de vinho

HYDROGARUM

Com adição de água

MELLIGARUM/MELLOGARUM

Com adição de mel

"Colatura d’alici"

Molho de peixe produzido na vila de Cetara, na costa de Amalfitan, em Itália, que apresenta fortes semelhanças com o antigo garum: a “colatura d’alici”, cujo nome significa “filtragem de anchovas”. A colatura é um líquido de cor âmbar obtido de o processo de maceração das anchovas em sal.

HAIMATION

Nos primeiros séculos da nossa era, a produção e o comércio de garum foram elementos muito importantes para a economia; após o Império Romano cair o cenário econômico no Mediterrâneo mudou. No entanto, a produção em pequena escala continuou em locais diferentes, como pode ser visto em todas as realidades culturais herdeiras dos costumes romanos.

Em Bizâncio, no século X, foi escrito a Geoponica, importante coleção de livros sobre agricultura promovida por Constantino VII Porphyrogennetos (913-959 d.C.). Neste trabalho é dada uma receita para a produção de garum, produzido num recipiente: “Coloque as entranhas de peixes e peixes pequenos com sal num recipiente e deixe-os ao sol mexendo a mistura com frequência. Depois de obtido o molho, filtre tudo para um cesto, onde fica a parte sólida, o allec. Quem quiser usar este garum de imediato, sem deixá-lo ao sol, pode fervê-lo filtrando cuidadosamente a mistura duas ou três vezes, até que o filtro esteja limpo. O melhor granum é chamado de “haimation” e é feito com entranhas, brânquias, soro e sangue de atum. A mistura é deixada a fermentar num recipiente, com sal ,por cerca de dois meses. Então a e recipiente é aberto e o garum é estabilizado. ”

MURRI

Na cozinha islâmica medieval, embora presente em muitas receitas de Apicius e na cozinha desde os tempos romanos, o garum era substituído por um novo produto amplamente mencionado pelos gastrônomos iraquianos desde o início do século IX: o murri. O murri era muito diferente do garum: consistia num pó de peixe seco ao sol e salgado, diluído em vinho doce com orégão e colocado em fermentação numa ânfora oleada com marmelo e pedaços de cebola. Também existia um tipo de murri produzido a partir de cereais tostados, com um processamento mais rápido.

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selo de mar BOTTARGA - OVAS

Bottarga de ovas de cherne

Bottarga de ovas de cherne

Ovas de cherne curadas em flor de sal, desidratadas em ambiente controlado e revestidas de cera de abelha virgem

Ingredientes: ovas de cherne (99%), flor de sal (1%)

Produto artesanal

Pescado selvagem, rico em Omega 3, sem corantes nem conservantes

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Espécies vegetais

Figo da índia

Figo da índia

A Cultura da Figueira-da-índia (Opuntia ficus-índica (L.) Mill) no Alentejo

Instituto Politécnico de Beja

Escola Superior Agrária de Beja

Mestrado de Agronomia

Estudo de dois compassos de plantação

Dissertação de Mestrado apresentado na Escola Superior Agrária do Instituto Politécnico de Beja

Elaborado por: Francisco José Avó Fole

Orientado por: Doutora Mariana Augusta Casadinho Parrinha Duarte Regato

Beja 2014

Opuntia ficus-indica (tabaibeira, figueira-do-diabo, figueira-da-índia, piteira, tuna, figueira-tuna, figueira-palmeira ou palma)

A Opuntia ficus-indica (L.) Mill é originária da América, mais propriamente do México, (Polunin et al, 1978; Guia da Flora e Vegetação do Andevalo; FAO, 2001). Esta planta sul-americana foi introduzida na Europa por Cristóvão Colombo e difundiu-se por várias regiões mediterrânicas, sendo, como tal, um dos catos mais comuns desta região, tendo como “habitat” principal zonas áridas e rochosas circundantes do Mediterrâneo (Polunin et al., 1978).

Taxonomia

De mais de um milhar e meio de espécies de catos conhecidos, existem cerca de 300 espécies do género Opuntia na família Cacteacea (Scheinvar, 1995; Moahamed-Yasheen et al., 1996 citado em Alves, 2011).

As características taxonómicas são de difícil classificação e resolução (Sheinvar, 2001 citado em Jaqueline Oliveira, 2009), devido à sua complexidade, que advém de variações fenotípicas, em virtude de várias condicionantes climáticas, poliploidia e hibridação, tornando o seu estudo pouco atraente aos taxonomistas. Igualmente, Alves (2011) refere a dificuldade por parte dos autores em relação à sua caracterização taxonómica.

Podemos então classificar a figueira-da-índia da seguinte forma (FAO, 2001 citado em Alves, 2011):

Classificação científica:
Reino: Plantae
Divisão: Magnoliophyta
Classe: Magnoliopsida
Ordem: Caryophyllales
Família: Cacteacea
Subfamília: Opuntioideae
Género: Opuntia
Espécie: Opuntia ficus-indica (L.) Mill

Segundo diretrizes de examinação da UPOV (União Internacional para a Proteção de Novas Variedades de Plantas – Genebra 2006), podemos eleger dois grupos de espécies.

No primeiro grupo (Figueira da India; Pera Espinhosa) inclui-se a Opuntia amyclaea Tenore, Opuntia ficus-indica (L.) Mill., Opuntia streptacantha Lemaire, Opuntia megacantha Salm-Dyck, Opuntia duranguensis Britton et Rose, Opuntia lasyacantha Pfeiffer, Opuntia robusta Wendlan e Opuntia hyptiacantha Weber.

No segundo grupo “Xoconostles”, inclui-se a Opuntia joconostle Weber, Opuntia matudae Sheinvar, Opuntia oligacantha Sheinvar, Opuntia leucotrica DC, Opuntia heliabravoana Sheinvar e Opuntia spinulifera Sheinvar.

Características Botânicas e Morfológicas

As suas características são bastante variáveis, devido à diversidade existente, podendo variar a forma dos seus cladódios, tamanho, a presença ou ausência de espinhos, o tamanho e cor dos frutos e da polpa.

Conforme Scheinvar (1999) citado em FAO CACTSUNET (2006), podem-se observar diferenças, como por exemplo na Opuntia ficus-indica (L.) Mill, em que os seus frutos são doces, suculentos, podendo variar a sua cor entre o laranja, vermelho ou púrpura, com muita polpa e epiderme ou casca de grossura variável, normalmente delgada. Já no grupo de O. xoconostles, os frutos são mais pequenos, de sabor ácido, exteriormente de cor verde-púrpura e rosados na polpa.

Podemos apresentar a caraterização da Opuntia ficus-indica (L.) Mill, a que mais nos interessa, do ponto de vista agronómico conforme descrição do Guia da Flora e Vegetação do Andévalo (S/D), a figueira-da-índia apresenta-se como um arbusto até 5 m de altura, com cladódios de 30 a 50 cm de comprimento, e de um modo geral, com forma oval, de espátula ou de raquete, ou oblonga com aréola com 2 a 7 espinhos de cor branca a acinzentada e pêlos gloquidiados amarelos ou pardos, flores de 5 a 8 cm de diâmetro, amarelas (fig. 7), ou alaranjadas (fig. 8); frutos com 6 a 9 cm de comprimento, obovoides, verde-amarelados, alaranjados ou roxo-pálidos. Floresce de março a junho.

O sistema radicular da OFI é muito extenso, densamente ramificado, com muitas raízes finas e absorventes, sendo superficiais quando se encontram em zonas áridas e de pouca pluviosidade. O tamanho das raízes está relacionado com a disponibilidade de água e práticas culturais, em que esteja presente a rega e fertilização (Sudzuki et al., 1993; Sudzuki, 1999; Villegas y de Gante, 1997 citado em FAO-CACTSUNET, 2006).

O crescimento e desenvolvimento do cladódio efetua-se em cerca de 90 dias. Nas duas faces do cladódio ocorrem gomos ou gemas chamados aréolas, que têm capacidade para desenvolver novos cladódios, flores e raízes aéreas, conforme as condições ambientais presentes (Sudzuqui et al., 1993 citado em FAO-CACTSUNET, 2006).

As flores de cor amarela ficam sempre na margem dos cladódios, tendo numerosas sépalas e pétalas, agrupadas num tubo polínico (Polunin et al., 1978). Conforme Sudzuki et al. (1993) citado em FAO-CACTSUNET (2006), as flores da planta são hermafroditas e solitárias e desenvolvem-se no bordo superior dos cladódios, variando a sua cor, além do amarelo, vermelho, branco. No entanto, podem ocorrer dois períodos de floração em alguns territórios, como já foi referido anteriormente, dependendo de condições ambientais ou práticas culturais específicas. Os seus frutos são de forma oval, (Polunin et al., 1978); o fruto é uma falsa baga com o ovário ínfero simples e carnudo.

Ainda quanto à forma dos frutos, e à sua variabilidade (Chessa et al., 1997; e Ochoa, 2003 citado em FAO-CACTSUNET, 2006), detalham os tipos de fruto como ovoides, redondos, elípticos e oblongos, com as extremidades aplanadas, côncavos e convexos; igualmente diferem as cores da epiderme e da polpa: vermelho, laranja, púrpuras, amarelos e verdes; na (fig. 9) podemos observar frutos com polpa púrpura.

Na figura seguinte apresenta-se frutos com polpa de cor verde e epiderme também verde (fig. 10).

Os frutos podem ter muitas ou poucas sementes, ou ausência de sementes. Há mercados com preferência de frutos com poucas sementes, ou mesmo sem sementes (fig. 11). Como tal, o melhoramento genético está orientado para estas características (Mondrágon-Jacobo, 2004 citado em FAO-CACTSUNET, 2006).